quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

hora da boia

À mesa, a família. Bem podia ser um cocho. Pusessem ali um medidor de ruído, não haveria escala que comportasse tamanho grau de poluição sonora.

O pai, sem dúvida, candidato favorito a barrão do século, seja pelo refinamento de segurar os talheres como um par de marretas, seja pela elegância com que enchia a boca bem cheia mesmo para depois falar, proporcionando assim, aos circunstantes, uma espetacular sequência de esputações das mais variadas substâncias numa miríade de formas: grãos de arroz e feijão, flocos de farinha, caroços de tomate, fiapos de carne, perdigotos de azeite com vinagre. Se fosse posta uma chapa de vidro na frente daquela bocaça, ao fim de cada refeição se obteria algo como uma nova colagem pós-moderna.

Na primeira vez em que ouviu o pai mastigando, o garoto pensou que um caminhão-betoneira tivesse estacionado na frente da casa.

“Fecha as asas!” A frase saiu de dentro daquele vórtice junto com uns farelos de gema de ovo cozido e um talinho de brócolis. Ninguém entendeu o que o velho disse, o que tinha de comida naquele buraco, não havia som que saísse claro. Mas todos sabiam que o recado era para o garoto. Sempre era.

Ele tinha raiva. Profunda. Raiva de ter raiva. Mas era o que sentia. Não tinha jeito. Como ter domínio sobre si, se não tinha domínio nem sobre seu espaço na mesa de refeição? E a raiva vinha, inevitável, e a raiva era engolida, inteira, grossa, lenta, como uma generosa colherada de merda.

“Não se faça de surdo agora! Anda! Fecha essas asas, sua poia inútil!” Fechar as asas significava que o moleque devia comer com os cotovelos colados ao corpo. Assim, feito se não tivesse braços, como se fosse uma espécie de tiranossauro rex, uma espécie com poder lesivo quase igual a zero.

“Para de fazer barulho mastigando!” Seria possível que ele, um garoto, fizesse mais barulho com a boca que aquele velho? Seria possível mesmo que ele, pouco mais de um metro de altura, vinte e poucos quilos, produzisse sequer metade do ruído que o velho produzia com aquela latrina gigante que possuía no lugar de uma cavidade bucal?

“Tira esse copo de perto da mão, você vai derrubá-lo!” E o velho pegava o copo do garoto e o colocava onde bem entendia, desde que longe do alcance do garoto.

O velho socava a forragem para dentro do bucho com uma sofreguidão que até deixava seus comensais apreensivos, com medo de que ele tivesse um piripaque, ou ainda de que, naquela celeridade, por engano, engolisse um talher, quiçá a própria mão.

“Vê se come devagar, moleque! Esse daí é incapaz de aprender qualquer coisa! Maledetto! Vai ver só quando uma úlcera te perfurar as tripas!”

Mais uns instantes e:

“Segura esses talheres direito!”

Nessa altura, o garoto constatava a vanidade de haver feito um prato, bastaria colocá-lo vazio diante de si e esperar que o velho o completasse com os fragmentos que voavam de sua boca cada vez que lhe grunhia uma repreensão. Esse alimento, óbvio, até já vinha salivado. Pré-digerido. Como os passarinhos.

“Fica com a cara mais longe do prato, ô animal de rabo!”

Por que raios ele simplesmente não dizia: “Faça tudo que não estou fazendo, bocó!”?

Mas dias também havia em que aflorava a sensibilidade, a delicadeza daquela alma. Em ocasiões assim, se acaso à mesa surgisse uma discussão entre seus filhos, ele inclinava a cabeça um pouco para baixo e para o lado, fechava os ombros sobre o peito e declarava num tom de sofrida resignação, olhos perdidos no nada: “Se eu soubesse que ia sair do trabalho e pegar condução, só para vir almoçar com minha família e encontrar este ambiente de inimizade e discórdia, eu teria logo comido na rua mesmo”.

A mesa ficava em silêncio. Tumular. Todos sabiam que o sujeito estava a um passo de um chilique, se tanto.

Se era por falta de adeus...