terça-feira, 12 de janeiro de 2016

VÁ TRABALHAR VAGABUNDO!

Em homenagem e agradecimento ao amigo Fajardo


          Acho curioso o zelo que assoma em muitos de meus semelhantes quando se discutem políticas de inclusão social. Tantos se erguem e declaram-se favoráveis a elas, desde que ─ e aí é que vem a grande ênfase ─, não obstante, o incluído, em contrapartida, retribua com seu trabalho o benefício recebido ─ representado por verbas inseridas em rubricas tais como bolsa-família ou salário-educação, as quais têm por fim proporcionar ao indivíduo uma renda que o situe acima da linha divisória existente entre a pobreza e, mais abaixo, a miséria.
         Na mesma linha de raciocínio, critica-se a política de redistribuição agrária, sob o argumento de que a imensa maioria dos assentados, em vez de cultivar a terra, procura vendê-la quanto antes, atrás de lucro rápido e fácil.
         Fica-me a impressão, em suma, de que o discurso dos que se opõem às políticas de benefício social normalmente versa sobre um mesmo tema: os destinatários das benesses nada dão em troca do que recebem, o que constituiria falta gravíssima, causadora de incalculáveis danos econômicos e sociais, resultantes do desperdício de dinheiro público e da aprovação tácita do governo à conduta de gente que, sem nada fazer, é agraciada por programas de renda mínima financiados pela parcela da população supostamente pagadora de tributos.
         Sempre me pareceu curiosa a relação estabelecida, no Brasil, entre as classes que ingerem, ao menos, três refeições diárias e aquelas cujo consumo de calorias não raro fica aquém do mínimo aceitável estipulado pelos órgãos internacionais de saúde.
         Permitam-me aqui abrir um parêntese. Neste momento, trato da relação entre ricos e pobres neste país, considerando sua peculiaridade. Convém notar, todavia, que ainda mais curiosa que a dita relação é a própria distância a separar os mencionados segmentos sociais, de dimensão abissal. Mas peço licença para passar por cima de tópico tão relevante e desde já discutir somente um aspecto da aberrante convivência estabelecida entre ambos.
         A impressão que me vem é de que, pela visão dos nutridos, aos desnutridos cumpriria se dobrar em reverência aos senhores por não mais serem escravizados, por finalmente disporem de liberdade para esfaimar da forma que melhor lhes aprouver.
         Ou seja, pelo simples fato de não mais sujeitar-se à condição de propriedade alheia ─ não sendo, por conseguinte, obrigado a trabalhar em troca de remuneração alguma ─, o pobretão deveria se sentir em permanente dívida de gratidão com os membros das classes mais abastadas, cuja expletiva piedade permite-lhe padecer livremente sua fome sem que lhe sapequem uma tunda ─ exceto quando atropelado por um desses inarráveis casos isolados de que nossas laboriosas corporações policiais tão pródigas são ─ e concede-lhe o exercício de suas liberdades ambulatórias ─ também conhecidas como direito de ir e vir, embora eu não consiga vislumbrar aonde queira ir, ou de onde queira vir, uma pessoa com o estômago pregado nas costas, a não ser que tal deslocamento implique a obtenção de comida.
         Enfim, parece-me que, aos olhos dos que não passam fome, os esfomeados deveriam expressar nada além de seu reconhecimento pela bondade de quem abnegadamente teria renunciado ao direito divino de colocá-los a ferros e fazê-los cozer sob o sol em plantios e colheitas, até que a morte os separasse.
         A meu ver, somente partindo-se desse raciocínio chega-se à conclusão de que o mau uso dos recursos públicos pelos destinatários de programas de benefício social constituiria tamanha afronta aos valores de nossa sociedade.
         Sim, porque se o camarada, pela dádiva de não mais ser vítima da escravidão, teria o dever de beijar os pés dos abonados, por receber os caraminguás do bolsa-família ou do bolsa-escola ─ a bem dizer, nem sei se estou denominando corretamente os programas, mas isso em nada invalida minhas razões ─, ou mesmo por obter um pedaço de terra num assentamento que, muitas vezes, não é dotado de infraestrutura nenhuma, o sujeito deveria, em lágrimas, franquear todas as suas cavidades corporais ao livre tráfego do patronato.
         Acho isso curioso também à vista de que, quando os ricos cometem velhacarias com dinheiro público ─ as quais estão bem longe de ser poucas e, de regra, envolvem quantias infinitamente mais altas que as dos pobres ─, não se verificam rasgos tão inflamados em defesa da decência e da moralidade.
         Quando uma imensa empresa do ramo de telecomunicações acumula uma dívida bilionária com o fisco, não se vê sequer uma minúscula marola de indignação contra os privilégios desses ricos caloteiros.
         Quando o governo gasta bilhões para salvar bancos mal administrados da falência, ninguém deblatera atacando esses banqueiros safados que são premiados com importâncias exorbitantes para salvar seus negócios mal geridos.
         Ocorre, entretanto, que, tendo em mente tais elementos, torna-se mais fácil identificar o que é realmente danoso para o país.
         São os pobres sem moral.
         Claro, pois o rico que sonega ou que se apropria ilicitamente de dinheiro público deve estar procedendo conforme a vocação natural de seu estrato na sociedade.
         O pobre, por sua vez, repita-se, deveria se convencer de que, simplesmente por não estar sujeito à escravidão, com todos os seus consectários, ele ficaria moralmente obrigado a atos diários de contrição por viver livre em sua pobreza.
         Querer, ademais, programas de benefício social que promovam o despertar de uma consciência cidadã nas camadas menos favorecidas e sua inserção na cadeia de consumo constituiria o mais gravoso dos ultrajes. Não fosse por outros motivos, bastaria a simples evidência de que a plebe, invariavelmente, conduz-se de maneira a frustrar os fins dos programas sociais, convicta de que a si são conferidas as mesmas liberdades de que desfrutam os abonados no trato com a coisa pública.
         Enfim, creio que, na visão dos que se opõem a diretrizes inclusivas, os defensores de tais políticas deveriam compreender que ao despossuído nada pode ser dado “de mão beijada”, porque assim ele, embora nunca contemplado em muitos de seus direitos sociais elementares ─ aqueles elencados na Constituição Federal, que lhe assistem tão só pelo fato de ser brasileiro ─, fatalmente se converteria em parasita explorador do erário, comportamento de todo reprovável, venha de quem vier, mas aparentemente muito menos lesivo ─ quiçá mesmo benéfico, segundo as circunstâncias ─ quando adotado por membros das classes ricas, malgrado os desvios destes normalmente alcancem somas astronômicas, ao contrário do que ocorre nos segmentos sociais mais humildes.
         Diante de tais evidências, só me resta pedir perdão por discordar dos endinheirados e seus satélites, pois tenho certeza de que nessa história deve residir alguma moral que não consigo captar. Afinal de contas, seria implausível supor a existência de tantas pessoas capazes de crer em algo que, no frigir dos ovos, não passaria de singela imbecilidade.
        
PS: eu sei, atribuí ao verbo esfaimar um significado (sofrer fome, passar fome) que os dicionários não lhe atribuem; dane-se, gostei da sonoridade.