quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

PALHAÇO EU?

engraçado meu pai

viveu afirmando crenças

como se fosse grande

como se farto de fibra

ele que cheio de trauma e de dor

nem sabia mais o que era dor

que de tanto sofrer

terminou por desconhecer o sofrimento

que de tanto precisar

chegou a crer que precisava mentir para viver

que de tanto buscar sobreviver esqueceu o que era vida

meu pai

para sobreviver

deixou de existir

sábado, 3 de dezembro de 2011

IGNORAR É VIVER

sei que algum dia sairei daqui

até lá vivo como potencial suicida

e minha nossa só espero nunca
encontrar o mundo espiritual bunda
dos kardecistas

nem céus e infernos e purgatórios

nem hordas de evangélicos católicos maometanos e o caralho a quatro

todos todos todos chatos de amargar

gostaria de um canto tranquilo reservado para obesos comilões beberrões e algo mesquinhos como eu

a bem dizer espero que haja nada

e que eu também nada venha a ser

na falta de coisa melhor

deus diabo e seus puxa-sacos

também conhecidos como religiosos

são um grandessíssimo dum baita
dum pontapé nos culhões

sábado, 12 de novembro de 2011

menos um

Escritor no sofá, prancheta com poucas folhas, caneta na mão, calor, certa umidade, calor, moscas, calor, mosquitos, calor, mutucas, calor, muito calor e mais calor. Nunca vou conseguir pensar com esta porra de clima, pensava o escritor.

Nunca se dizia escritor. Se um sujeito parasse na frente dele e dissesse sou escritor, ele riria, riria pra valer da cara do infeliz, ainda que só por dentro. Ria de si mesmo quando se pensava escritor e isso já era riso suficiente para humilhá-lo. Podia passar sem zombarias alheias, nunca se dizia escritor.

Ainda que fosse escritor, escrevia tão pouco e, do pouco que escrevia, tão pouco ao menos chegava perto de prestar. Se se dissesse escritor, estaria se expondo não só ao ridículo de soar pretensioso, como também ao de passar por mentiroso.

Pois então o escritor naquele calor filha da puta empenhava-se em fazer o que nunca fazia: escrever.

E aí do nada apareceu o porreteiro e, antes que se pudesse abrir a boca, sentou uma puta duma bordoada na cabeça do escritor, que nem mudou de posição, ficou lá, no sofá mesmo, o queixo encostado no peito de um modo estranho, o olhar quase tão morto quanto em vida, a testa rachada e sangrada; a caneta, uma bonita tinteiro com pouquíssimo uso, rolou da mão para o assento do sofá, a prancheta permaneceu onde estava, sua extremidade inferior presa entre a coxa e a tremenda pança do defunto.

O porreteiro então pegou os escritos do escritor e deles fez uma fogueira que bem pouco durou.

“Menos um.”

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

deus não existe

Difícil, impossível mesmo dizer por que alguns lampejos vêm à mente em um dado momento, em um certo lugar. Eles vêm, eis tudo.

Foi assim com Deus. Lá estava ele em seu escritório sem pensar em nada, explorando sexo na internet, e súbito a certeza brotou dentro de si pétrea, arraigada, inapelável.

“Puta que me pariu! Eu não existo!”

Parou e encarou por mais um momento seu vazio mental, quase que uma baba lhe escorre do canto da boca.

“Nem princípio nem fim? Nem primeiro nem último? Nem alfa nem ômega? Nem boca nem cu?”

Quase se distraiu com um esplêndido par de seios que surgiu na tela do monitor, fruto da pesquisa que vinha fazendo. Mas logo deu por si e voltou à pasmaceira original.

“Que bosta! Acho que perdi a fé em mim...”

Ligou para a secretária.

“Dona Maria, cancela todos os meus compromissos da semana.”

“Está bem, Doutor.”

“Se perguntarem, diga que fui fazer uma desintoxicação nos States. Pensando melhor, cancele meus compromissos do mês.”

“Do mês?”

“É! Alguma objeção?”

“Perdão, Senhor, é que é tão raro o Eterno desmarcar Sua agenda.”

“Pois guarde sua curiosidade para a senhora e faça o que Eu mando!”

“É pra já! Fiat voluntas Domini!”

Era nisso que dava ficar de intimidade com a criadagem. No casamento de dona Maria, até hoje não sabia bem como (sempre bebia demais, o que, volta e meia, causava uns brancos fatais na Divina Onisciência), terminara Ele, Deus, no leito nupcial com dona Maria (menos mau que tenha sido com ela e não com o marido, forçoso reconhecer), enquanto José, o recém-casado, roncava no sofá da sala, de porre.

Na manhã seguinte, a velha música: despertar numa cama estranha, num quarto estranho e dar de cara com uma cara estranha a fitá-lo sorridente. Mas a cara não era estranha, era a cara de dona Maria, casada na noite anterior, e não com Ele.

“O Senhor salvou minha noite de núpcias. Fosse eu contar com aquele lá (indicou com o queixo a sala, onde José estava)... Bebeu mais que os convidados, arranjou briga com todos os garçons e até com o motorista da limusine, que por isso foi embora e nos deixou a pé. Ainda bem que o Senhor se ofereceu para nos trazer até aqui.”

“E aí, nós dois... Como foi que aconteceu?”

“O banana apagou dentro do carro, ainda no caminho. Não acordava de jeito nenhum, a gente trouxe ele arrastado para cá. Daí eu comecei a chorar de decepção, o Senhor me abraçou, eu encostei a cabeça no seu peito, a gente se beijou e... terminamos aqui.”

Deus se sentia no limiar de uma crise de pânico, especialmente por causa do olhar de dona Maria, meloso.

“Bem que o Gabriel me avisou.”

“Gabriel?”

“Ele trabalha na expedição, todo dia traz a correspondência e me entrega. Um anjo de pessoa. Com todo respeito, ele me disse que o Senhor nunca dá ponto sem nó.”

Ela o encarou com aquele sorriso. Apavorante.

“Acredita que eu era virgem?”

“Mas nem que a vaca tussa!”

“Era sim, bobão.”

Da inusitada aventura houve um fruto, como é do conhecimento de todo o mundo cristão.

Ao contrário de Deus, dona Maria não sentiu nem uma gota de vergonha do acontecido. Longe disso, quando descobriu que fora emprenhada por Deus, fez todo alarde possível e não se teve notícia de repúdio a seu ato, tudo que se via era admiração e inveja. A dona fora comida pelo Todo Poderoso, ora. José, por sua vez, tornou-se o manso mais notável da história da humanidade, registrou e criou o Filho do Outro sem dizer um ai. Justiça se faça, que podia ele contra o Criador?

O fato de ter em casa o Filho de Deus trouxe ao casal fama e prestígio. A clientela da marcenaria de José cresceu exponencialmente e Maria foi rapidamente promovida e recebeu um aumento substancial no salário, tornando-se secretária-chefe do Onipotente.

O tempo passou, o Menino cresceu. Quando do faniquito divino ora relatado, Jesus já estava na casa dos vinte e vivia tendo atritos com José, que não podia mais com a falta de consideração daquele borra-botas, toda hora a se proclamar o Filho de Deus.

Depois de aplicar a esfrega em dona Maria, Deus pegou o celular e ligou para seu motorista.

“Cristóvão, por onde que você anda?”

Cristóvão respondeu do outro lado da linha, uma resposta que Deus ouviu sem muita paciência.

“Tá bom, tá bom! Então termina logo essa troca de óleo e vem me pegar. Onde? Aqui na Sede, porra! Tá de sacanagem comigo? E vê se anda logo!”

Voltou-se para dona Maria.

“Sabe do Cris?”

“A esta hora, certamente está na faculdade.” Jesus fazia medicina, queria se especializar em ginecologia para ver se conseguia enxergar algum sentido nessa história de concepção imaculada (por que os pais mentem tanto para os filhos?).

“Eu preciso falar com Ele.” Por que com Jesus? Porque era Seu Filho, alguém que, sem dúvida (sem dúvida?), existia e que Ele pusera no mundo. Junto do Moleque, talvez conseguisse recuperar a fé em Si (ou Se convencer de que ela estava perdida para sempre).

“Liga pro celular Dele.”

A limusine divina parou em frente à entrada principal da faculdade de medicina. Jesus pulou pra dentro.

“E aí, Cristóvão?”

“E aí, Cris?”

Deus no compartimento traseiro, já no terceiro uísque, um havana pela metade entre os dedos. Sobre um assento, um espelhinho todo salpicado, e Nosso Senhor com um bigodinho branco que não era, de modo algum, resultante da ingestão de um copo de leite.

“Porra, Pai, não é nem meio-dia e o Senhor já tá no grau!”

“Enfia o sermãozinho no cu que Eu tô só começando! É isso mesmo! Eu vou enfiar o pé na moranga e não tô com saco pra crítica!”

“E pra que o Senhor Me chamou?”

“Pra Te levar pra bandalheira. Topas?”

Jesus já conhecia as farras do Pai, pra lá de memoráveis.

“Tá, tô dentro. Agora Me conta o que aconteceu. Andou lendo de novo o Jabor? O Olavo? O Mainardi? Alguma coletânea do Corção?”

“Que nada! Descobri que não existo.”

“Mas é claro que o Senhor existe!”

“Mas agora me convenci de que não sou o Criador que fez do homem Sua imagem e semelhança. O que sou é a criatura, imagem e semelhança do meu criador, o homem, que me inventou para ter uma justificativa transcendental da governança autocrática.”

“E por que esse raio de convicção justo agora?”

“Não sei. Hoje, mais cedo, Eu tava buscando putaria na internet e de repente o browser deu pau. Fiquei com raiva, com vontade de fuder com tudo. Daí resolvi parar tudo, todo este planeta, o universo inteiro. Proferi o Verbo e nada, absolutamente nada aconteceu.”

“Vai ver Tu não se concentrou legal.”

“Conversa! Eu sou Deus, porra! Ou ao menos deveria ser.”

“Tá bom! Mesmo assim, e daí? Cê continua sendo, pra todo o zé-povinho, o Todo Poderoso, o Tri-fodão. Aproveita, ora! Só se vive uma vez!”

“Tá certo, cê tá certo. Verdadeiro ou não, eu tô aqui, cheio de grana, cheio de um poder que me foi dado sem que eu pedisse. Vamos cair na patifaria!”

Conseguiram juntar uma galera (Lúcifer e seu filho mais velho, Lúcifer Olegário, Tomé, Mateus, João, Pedro, Joseph Smith, Paulo, Belzebu, Zoroastro, Asmodeu, Sarney, Bento, Dalai, Ellen Gracie, Edir, Mohandas, Hillary, Stalin, Dercy, Evita, Lincoln, Collor, Pinochet, Tatcher, Mao, Adolph, Maomé, Churchill, Nixon, Bush pai e filho e mais uma porrada de gente), fretaram um jato e foram para Las Vegas, onde conseguiram aterrissar no aeroporto, apesar da bebedeira geral e da insistência do Profeta em que se arremessassem, com avião e tudo, contra o prédio mais alto da capital do jogo.

Depois de duas semanas de esbórnia ininterrupta, o que se via era só corpos nus, peças de roupa largadas por tudo quanto é lado, garrafas vazias, seringas usadas, comprimidos, fichas de jogo e mais um monte de coisas estranhas, inclusive um bode a degustar lençóis e um grupo de anõezinhos vestidos de couro tacheado e acorrentados, tudo espalhado por tudo quanto era canto da maior e mais cara suíte de Las Vegas.

Amanhecia, finalmente todos estavam esgotados e dormiam ou permaneciam desmaiados no chão, sobre os móveis, na banheira de hidromassagem, onde fosse. De repente, do meio da balbúrdia, emergiu uma cabeça desgrenhada. Era madre Teresa. Ela se arrastou até onde Nosso Senhor estava apagado com uma piranha em cada braço e cutucou Seu ombro.

“Que que foi?” Perguntou o Criador.

“Porra, Deus, Tu num existe!”

“Foda-se!”

E o Criador aninhou Sua cabeça no farto seio siliconado de uma das piranhas.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

do perigo de respirar


Família na sala, tevê ligada, o filho tentando se fazer invisível, inaudível, inodoro, intátil, insípido.


“Olha lá, olha lá, pai, ele tá respirando de novo! Eu não falei? Para com isso, seu merda! Quem puxa aos seus não degenera!”

“Mas será possível que você nunca vai obedecer, seu inútil! Anda, para de respirar tanto, animal de rabo!”

“É, você tá respirando muito! Bem mal ceia quem come de mão alheia!”

Silêncio. A mãe e o pai de novo se voltam para o televisor. O garoto tenta aparentar uma imobilidade perfeita.

Passam uns quinze minutos.

“Ó lá, ó lá, ó! Eu vi, eu vi! Ele mexeu o peito duas vezes em menos de dez segundos! Tá só fingindo que não tá respirando, seu filha da puta! A raposa tanto vai ao ninho que um dia deixa o focinho!”

O pai acerta uma patada na cabeça do garoto, que a custo engole o choro para não apanhar mais e pede licença para sair da sala.

“Fica sentado aí, ô poia! Não me vai sair daqui para ficar respirando pelas minhas costas.”

Intervalo comercial. O pai comenta com a mãe uma notícia sobre o mundo comunista.

“Essa imprensa é toda vendida, tendenciosa! Onde já se viu? Perseguição política na União Soviética? Isso é tudo invenção de banqueiro judeu! Só porque lá mandam viado se tratar na Sibéria? Essa cambada de capitalistas tem inveja, isso sim! Inveja dos comunistas, que descobriram a cura da sodomia!”

“A cruz nos peitos, o diabo nos feitos!”

“E as batatas? As batatas soviéticas? Cada batatão, aquela beleza! Inigualável! Não tem americano capaz de plantar uma batata daquelas! Na União Soviética, que maravilha! Todo mundo come batata lá, tá ouvindo?! Todo mundo! A melhor batata do mundo!”

“Boa fama granjeia quem não diz mal da vida alheia!”

“E aquele clima, aquele clima sempre fresco! Ouviu? Nunca acredite nas mentiras desses jornais! Sibéria, temperatura sempre fresca!”

“Cada qual com seu igual!”

“Aquele lugar é maravilhoso! O Estado! O Estado toma conta de tudo! Todo mundo come batata da boa e ninguém peida na sala sem antes pedir licença! E é cada peido, cada peido que você precisa ver! Comunista, quando peida, é pra valer! Não é essas coisinhas frouxas que não dá nem pra esquentar os fundilhos!”

Convém ressaltar que o pai nunca estivera nem a menos de cinco mil quilômetros de nenhum país comunista e que tampouco era dado a ler, pois achava a leitura uma grande perda de tempo, ainda mais quando a televisão já fornecia toda a informação necessária de forma muito mais rápida e fácil. Tudo que ele falava do comunismo vinha da boca de conhecidos seus, gente tão lida e viajada quanto ele, gente que gostava de se dizer comunista só para chamar atenção.

“A palavras loucas, orelhas moucas!”

“Aquelas batatas, aqueles peidos, aquelas maravilhas! Todo mundo na escola, comendo batata, peidando, aprendendo e sendo curado da sodomia! Aquilo sim é que é país!”

Curto silêncio.

“E agora ficam aí, esses jornais, com essas mentiras!”

O menino aproveitou que os pais se distraíam com a conversa e procurou sorver o máximo possível de ar, mas a felicidade sempre dura pouco.

“Oia, oia, oia, pai! Oia ele lá! Respirando como se fosse um paxá! Ma ocê num tem jeito mesmo não, né, ô moleque! A ocasião faz o ladrão!”

Ato contínuo, os dois partiram para cima do filho. A mãe se encarregou das bofetadas, enquanto o pai segurou a cabeça do menino e fechou-lhe a boca e o nariz. Não demorou para que ele, o menino, começasse a se debater em desespero.

“Segura as pernas deste desgramado, mulhé! Segura, senão ele vai chutar a gente! Filho da puta, nunca vai ter respeito pelos pais!”

Os movimentos do asfixiado foram se tornando cada vez mais descoordenados, convulsivos, involuntários. O menino primeiro ficou vermelho, depois, roxo e, por fim, desfaleceu, cinzento, os lábios cor de chumbo.

Os pais deixaram-no lá mesmo, no chão da sala, e voltaram a sentar-se diante da tevê.

“A dor ensina a gemer.”

“Aquela batata comunista, aquilo sim é que é batata! Lá, quando eles fazem purê, é de bacia! Aquela fartura toda de batata!”

“Amor com amor se paga!”

“E os peixes comunistas? Lá os peixes são todos ensinados, todos eles saem da água pra cagar. Precisa ver, que beleza! Nas beiras dos rios e das praias tem aquele monte de banheiros estatais, tudo pra peixada descer o barro! Que beleza! Que organização!”

“Olha lá ele agora, pai, olha! Agora fica lá, esparramado no chão, se fazendo de morto. De casa de gato não sai farto o rato.”

“Ô rapaz, trata de levantar daí antes que eu perca a paciência!”

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Volta ao lar


Fim do dia, lá vinha o grande homem. Aquela reserva moral tanto podia vir mais cedo, direto do trabalho, quanto podia chegar mais tarde, vindo do puteiro, onde batia ponto com frequência e regularidade.


De qualquer modo, da labuta ou do lupanar, ele sempre chegava com a mesma postura de estátua equestre, muito embora viesse a pé. Evidente que, naquela cabecinha, o sujeito devia se imaginar o cavaleiro. A realidade, entretanto, informava que ele vinha de condução; vestia um terno daqueles, que se deformam à primeira olhada, gravata e camisa acompanhando o padrão; os sapatos mereceriam um capítulo à parte, um par por ano, sempre da mesma marca — cujas principais virtudes eram a feiura e o preço baixo, — capazes de emanar os mais pestilentos miasmas após meros trinta segundos nos pés, imagine então após meses naqueles pezinhos.

Ele entrava, passava por todos sem parar, no máximo meneava um pouco a cabeça — impossível saber se xingava, se cumprimentava, — e ia se aboletar diante do grande amor de sua vida: a tevê. Dali, só sairia para dormir; ali, só falaria no caso de algum corpo se interpor entre ele e a tela (“Vai sair da frente, ou quer levar porrada, filha da puta?!”).

Assim morria o dia naquela coisa, quer dizer, naquela casa.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Equinos e muares

Domingo. Voltando do clube para pegar o almoço em casa, onde a louca ficara, cumprindo seus deveres de doméstica.

Normalmente, aquela volta para casa aos domingos, depois da manhã passada no clube, era um alívio.

O menino não gostava de conviver com o louco. A louca vivia a dizer que o louco era um santo. O louco vivia a desprezar a louca, a enchê-la de chifres e a usá-la como empregada doméstica.

Aos poucos, as idas de domingo ao clube foram se convertendo numa maneira de o louco e a louca se evitarem. Ele, o louco, saía com os filhos para, supostamente, todos se divertirem juntos. Ela, a louca, ficava no lar — bom, talvez seja exagero chamar aquele portal do inferno de lar; digamos então que a louca ficava em casa, desfrutando de algumas horas longe dos filhos, dos quais ao menos os dois mais velhos eram-lhe insuportáveis. A louca ficava sozinha em casa, fazendo sei lá o quê, cozinhando, é fato, pois o louco esperava chegar e encontrar a boia pronta. A louca ficava sozinha em casa, cozinhando e fazendo o que mais as loucas usam fazer quando estão sozinhas em casa.

E os filhos lá, no clube, com o louco. O clube era relacionado ao banco estatal em que o louco trabalhava. Lá no clube ele encontrava seus colegas e juntos eles ficavam repetindo para si mesmos: “Puta merda! Como nós somos demais! Nossa! Me sinto tão foda por ser funcionário do imenso banco estatal!”

O menino ia para a piscina e gostava de mergulhar e ficar submerso o maior tempo possível. Ele adorava mijar dentro da água e pensava ser o único a fazê-lo. A infância e suas ilusões.

O terror maior do menino era ter de tomar banho com o louco — era bem nojento vê-lo sob o chuveiro. Ele não se ensaboava, ele se acariciava. Pura lascívia, na frente dum garoto de seis anos. Eca! Ele não se olhava, ele se contemplava. Ele gemia. Ele fungava. Ele suspirava. Justiça se faça, convém dizer que o espetáculo não era encenado para o menino. Este era simplesmente ignorado, como de hábito. Estavam no clube, no banheiro do vestiário masculino, aquela coisa detestável de vários chuveiros, um ao lado do outro, sem nenhuma separação física, vários homens tomando banho e podendo se ver, vários homens nus sem poder evitar a visão recíproca da respectiva nudez. Uma merda, ao menos para quem, como o menino, sempre achou o corpo masculino repugnante. E o sujeito lá, se adorando, libido a mil, passando a língua nos lábios e gemendo, quase babando. Supergay. Assustador. O menino não via a hora de se pirulitar dali e tentar, mesmo que em vão, apagar a cena da memória.

Sair daquele clube tinha um sabor de liberdade. Normalmente, significava ir para casa, almoçar e se afastar do par de loucos. Trancar-se no quarto, a sós com seus medos. Naquela casa, isso era o máximo de paz que se podia almejar.

Certos domingos, depois do almoço, saíam todos para visitar parentes, excelente oportunidade de torturar os primos menores, o que não deixava de ser agradável, mas nem estava próximo de ser a atividade favorita do menino.

Ele gostava mesmo era de ficar só. Ele e seus infinitos medos, que por muito tempo acreditou serem de seu exclusivo conhecimento.

Quis o destino, entretanto, que naquele dia, já a caminho de casa, o boçal visse, numa transversal, os cavalos.

Na infância, o pacóvio passara fome, além de outros apertos, na roça, e por isso considerava-se um sujeito do campo, embora vivesse na cidade já havia trinta anos. Vai daí que ele nutria aquela paixão por cavalos e que tais. Uma vez, tirou o menino da cama de madrugada, no inverno, para ver um burro que pastava no terreno baldio ao lado da casa. E lá ficaram eles, naquele frio desgraçado do inverno paulistano antes do efeito estufa, coisa em torno de zero grau, o menino contemplando não o burro, mas a besta que o arrancara da cama àquela hora, para observar um animal que se via toda hora nas carroças dos garrafeiros pelas ruas.

Resumindo: o panaca parou o carro, deu ré, entrou na transversal e foi até os cavalos, guardados por um camarada que os alugava para passeio. O mané — ou seja, o louco — pegou um dos cavalos — na cara do infeliz dava pra ver que ele se sentia o próprio John Wayne, — meteu o pé num estribo e, quando ia se erguer para montar na cela, o cavalo deu uns três passinhos adiante e o derrubou. Com o pé ainda preso no estribo, o idiota foi arrastado por uns poucos metros, uns dois ou três, o suficiente para render uns rasgões na roupa e algumas esfoladuras no couro.

E assim terminava a aventura equestre. O idiota se levantou do chão e mancou até o carro tentando fazer como se nada tivesse acontecido, o que só aumentava o ridículo da situação. Tudo que o menino queria era cavar um buraco e se enterrar. A vergonha só não doía mais porque o acidente teve a virtude de apagar os fumos cavalares do bocó, que depois daquilo só queria ir para casa. Ao menos nisso eles concordavam, enfim.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

odeio ascendente

        Shopping center, época de natal, gente escorrendo pelo ladrão, fila até para pensar.

        Taí uma coisa que odeio quase tanto quanto ascendente: shopping center. Nem por isso fico livre de ambos: ascendentes e shopping centers. E, é óbvio, o que mais me ocorre, como a todo mundo, é encontrá-los juntos: ascendentes e shopping centers.

        Como sempre, entrei naquela bosta de lugar com a ideia fixa de sair. Comprar o que necessitava e cair fora, quanto antes. Comprei e me encaminhei para a saída mais próxima.

        Só que ainda havia um obstáculo entre mim e o mundo exterior: a fila do caixa do estacionamento. E, é óbvio, a fila não andava.

        “Daí, quando a gente foi fazer o check-in em Orlando, imagina só, ganhamos um upgrade! Classe executiva, menina! Ai, eu e o Fábio mandamos baixar todo o bar do avião! As crianças? Não, elas ficaram na econômica. Nossa, tudo de bom!”

        Curioso como o telefone celular tem um poder, digamos assim, magnético. Nós lá, parados no tempo, no tempo não digo, mas no espaço sim, à minha frente contei vinte e uma pessoas, para trás calculei mais umas vinte. Todos em silêncio ou reclamando da morosidade do caixa. E no meio da história, alheia a tudo, falando mais alto que todos, bem atrás de mim, aquela mulher e seu telefone.

        Tomara que ela esteja cuspindo caquinhos de dente e de telefone até hoje.

        E a fila parada, completamente parada. Enquanto eu me distraía concebendo formas de matar a dona do telefone, um sujeito gordinho, com cara de gerente, apareceu no caixa, a funcionária que estava atendendo cedeu-lhe seu lugar e ele começou a digitar uns códigos e a passar um cartão na registradora. As reclamações só faziam aumentar. Da minha parte, eu só buscava, sem sucesso algum, não prestar atenção em nada.

         “A gente finalmente deu pras crianças o cachorro que elas vinham pedindo tanto.”

        Pobre cão. Pobres crianças.

        “E o Fábio, ai, aquele, quando quer... Ele resolveu que, se ia ser um pastor belga, o cachorro tinha que vir de um canil da Bélgica. O bicho veio até com passaporte. Imagina!”

        Enquanto isso, no caixa, lá na frente, o gordinho com cara de gerente tinha conseguido fazer a máquina voltar a funcionar e também tinha aberto uma outra máquina, ao lado da que voltara a funcionar, para acelerar o atendimento.

        “Pois é, querida, troquei. Agora estou com um Santa Fé. É da Hyundai, sabe, top de linha.”

        Com dois caixas atendendo, rápido chegou a minha vez. Assim que paguei, percebi que minha urgência urgentíssima de sair dali tinha passado. Coloquei-me a uma certa distância dos caixas e fiquei observando a dona do celular pagando o estacionamento, o que, é evidente, foi feito da maneira mais espalhafatosa e ostensiva possível, com coisas caindo da bolsa e proferimento de exclamações de espanto (“Mas isto tinha que acontecer agora!”) e o prosseguimento da conversação ao celular.

        Um tapa, um mísero tapinha era tudo que eu queria dar. Não, a bem dizer, eu queria acertar um senhor tapa, um verdadeiro tapão, uma senhora duma bolacha naquele depósito de botox.

        A dona pagou o estacionamento e partiu em busca de seu carro. Ainda ao telefone, queixava-se de naquele shopping não ter valet-parking.

        Segui-a. O carro, como não podia deixar de ser, era um baita dum SUV.

        Enquanto ela abria a porta, aproximei-me furtivamente.

        Quem eu estava enganando? Era evidente que não seria só um tapa. Quem acredita quando o alcoólatra diz que vai tomar só uma dose, ou quando o jogador diz que vai jogar só uma partida?

        Claro que não foi só um tapa. Mas claro também que não foi aquela sova em regra. Não que faltasse vontade da minha parte, mas, depois do terceiro soco na cara, a dona desmaiou, desabou e caiu sentada, encostada a uma roda de seu carro. Não deu nem para eu matar a vontade.

        Fosse como fosse, era melhor eu me afastar rápido dali.

        Como toque final, peguei aquela porra de celular, decerto o último modelo de iphone, e enfiei-o na boca da perua do modo mais violento possível. Ela ficou lá, desacordada, feito um mendigo bêbado, a respiração pesada, a boca cheia de sangue e celular.

        Odeio ascendente.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

esta é comprida...

AMOR E DOR

Não é de agora. Já de algum tempo. Ninguém fica mais jovem ao envelhecer. Óbvio. Mais fraco, sim. De corpo. De alma.

Quando me passaram o serviço não vi, não pressenti problemas. O alvo era conhecido. Tudo bem, não seria a primeira vez. Ou seria. O alvo era o Alves.

Não tenho amigos. Tivesse-os, o melhor bem poderia ser o Alves.

Não era. Estivemos juntos muitas vezes, fizemos várias viagens a serviço. Mais de uma vez, a vida de um dependeu da ação correta do outro.

Eu conhecia seus hábitos. Não foi difícil encontrá-lo.

Ele se hospedara num hotel do centro. Parecia bêbado. Parecia lúcido.

Seria muito tolo de minha parte crer que o pegaria de surpresa. Ele já me esperava. Se não a mim, a um outro qualquer.

Vá lá que o fato de ser eu possa tê-lo surpreendido. Provável, porém nada que chegasse, ao menos, a acelerar um pouco o coração.

Quando ele entrou no quarto, eu já estava lá dentro, sentado na única poltrona.

Sem cumprimentos. Ele só se largou na cama e se deixou ficar, olhando para o teto.

— Me desculpe, estou muito bêbado e muito cansado. Vou dormir.

— Você sabe por que estou aqui?

Pergunta imbecil.

— Sei. E você, sabe por que está aqui?

— Fui contratado.

        De olhos fechados, ele deu uma risadinha que morreu num sorriso.

Fez-se silêncio. Ele, de olhos fechados, ainda sorrindo, emitiu um ronco. Dormia. Eu, de pé diante da cama, o .38 com silenciador na mão inerte.

Não sei se sua cara era triste. Parecia cansado, bem cansado, e suas feições, velhas, bem mais velhas que sua idade.

Por que eu estava lá? Normalmente não nos diziam por que devíamos fazer um trabalho. Só nos indicavam o alvo e nos davam um prazo. Pagavam bem.

O Alves começara a falhar. Eu sabia. Eis o porquê de minha visita. Velhice, fraqueza, cansaço. Ele deixara escapar seu último alvo. Os rastos desse fracasso poderiam levar a muitos, produzir muitas prisões, revelar máculas de muitas reputações ilibadas.

Ao sair do quarto do Alves, não fui para casa. Não achei prudente. Procurei um hotel de luxo num bairro nobre e telefonei para Alícia. Pedi-lhe que passasse na minha casa e me trouxesse algumas poucas coisas que necessitaria para ficar fora por um tempo. Ou para sempre.

Havia muito que eu deixara de chamar outras mulheres. Só me sentia bem com Alícia. Nossa relação ultrapassou o aspecto profissional e já de um bom tempo tínhamos algo que talvez se pudesse chamar de namoro. Ela não queria mais receber por suas visitas e, sempre que precisávamos desabafar, procurávamos um ao outro.

Quando ela chegou, a primeira coisa que quis foi saber por que eu estava me escondendo.

— Não fiz o que esperavam de mim.

O Alves estava vivo. Ou, pelo menos, assim eu o deixara lá, naquele quartinho sórdido no centro da cidade.

Sem mais perguntas. Ela pegou uma cerveja para mim no frigobar. Perguntou o que eu queria comer. Respondi-lhe que nada. Ela ligou para a cozinha e ordenou alguns sanduíches quentes. Disse que estava com fome e que, mais tarde, eu também havia de querer comer.

Depois ela se sentou no sofá em que eu já estava e deitou minha cabeça em seu colo, acariciando-me o cabelo. Ligou o televisor e começou a passar os canais a esmo.

O sanduíches chegaram. Cada um de nós comeu um.

Mais tarde, na cama, depois de uma trepada meio banal, deitei-me de costas e, fingindo dormir, pensei nas opções de fuga e se eu gostaria que Alícia fosse comigo.

Era impossível dormir. A cabeça confusa. Não conseguia parar de pensar. E pensava desordenadamente. Alícia, do meu lado, parecia ter pegado no sono.

Eu também pensava no Alves, se ele conseguiria, ou mesmo se queria, escapar. Algum tempo depois espalhou-se a notícia de que ele tinha se matado. Nunca vi corpo, nunca vi sepultura, nunca pude saber o que lhe aconteceu de fato.

Sem que eu notasse, o sono veio. E sonhos, de que não me lembro.

Não me lembro porque não costumo mesmo me recordar de meus sonhos. Não me lembro também porque fui despertado de modo bem particular, por um ruído bastante meu conhecido, o de um cão de revólver sendo armado.

Abri os olhos. Alícia, de pé, diante de mim, com um .38 apontado para a minha testa.

Fiquei triste, fiquei surpreso, mais triste que surpreso. Ali estava a pessoa em quem mais confiei em minha vida, com uma arma apontada para a minha cabeça, no justo momento em que esta cabeça ia ficar a prêmio na praça.

Alícia fora posta junto de mim para me vigiar e eu nunca percebera isso. A carne é fraca. O coração, ainda mais. Olhamo-nos, a arma entre nós.

— Acredite, eu não queria te dar esta decepção.

Permaneci mudo. Ela apertou o gatilho, a espoleta foi detonada.

Sempre gostei do calibre .38. É meio que um automóvel popular das armas de fogo. Em todo lugar se encontram armas e munição .38, por excelência a escolha preferencial do homem médio. Todo mundo tem, todo mundo sabe mexer, tem a força suficiente para o que, em geral, preciso fazer e é a arma que mais facilmente desaparece na multidão.

Fiz do .38 minha ferramenta básica de trabalho. Apenas excepcionalmente faço uso de outros calibres, ou de outras armas. Faca ou .22, quando a morte deve ser dolorida, longa. Corda, ou qualquer outro instrumento constritor, quando devo passar por um detector de metais para chegar ao alvo. 9mm ou .40, quando as suspeitas devam recair sobre policiais ou outras autoridades. Explosivos, quando não há outro jeito. Sempre me recusei a usar veneno, coisa de viado, e fogo, muito difícil de controlar.

Tirante raras situações especiais, sempre vou de .38. Costumo carregar dois comigo. De noite, quando vou dormir, sempre deixo um deles num lugar evidente, bem fácil de encontrar, carregado com balas de festim. O outro fica comigo, bem perto, sob o travesseiro, o que não é nada confortável, ou na gaveta do criado mudo, ou ainda debaixo da cama, carregado preferencialmente com balas de ponta oca e, também preferencialmente, com um silenciador atarraxado na ponta do cano. Quase sempre é melhor não fazer barulho.

Alícia apertou o gatilho. Eu sabia que ela não viera armada, pois mexi em sua bolsa para pegar cigarros, nosso relacionamento incluía essa espécie de liberdade.

Nas coisas que ela me trouxera de casa também não havia arma. Eu verificara, não por suspeita, mas só para me assegurar de que nada importante fora esquecido.

Sua bolsa estava limpa. Sua roupa era muito justa. Não tinha onde ela esconder um revólver do tamanho daquele posto na minha cara.

Alícia disparou, houve o estampido. Esse é o momento em que normalmente me aproveito para pegar o revólver perto de mim e, digamos, liquidar a fatura. Meu pretenso assassino ainda se encontra sob o efeito do disparo, certo de me haver matado. A coisa com que ele menos conta é com uma pronta reação do suposto defunto, eu, no caso. Esse ardil já me salvou a vida mais de uma vez.

Houve o estampido. Um barulho altíssimo, que decerto me provocaria alguma perda auditiva permanente. Ela permaneceu de pé, do jeito que estava antes de atirar, parecia petrificada. Não era possível que fosse uma novata, mas agia como tal. Ninguém, em sã consciência, mandaria uma pessoa totalmente crua para cuidar de mim.

Me movi. O som da explosão ainda ecoava por toda a minha cabeça. Gritei um palavrão bem alto, mal me escutei.

Sentei na cama. Alícia, linda, fraca, continuava imóvel, a arma ainda segura pelas duas mãos, mas apontada para baixo.

Havia lágrimas em seus olhos, e um ligeiro tremor, não sei onde.

Dei um suspiro fundo.

Tinha gente batendo na porta do quarto, vozes falando ao mesmo tempo. Eu precisava atender antes que resolvessem chamar a polícia.

Aquele era um hotel de alto padrão, não um pardieiro de beira de estrada ou centro de cidade. A polícia só entraria lá se fosse solicitada, nunca chegaria abrindo caminho a pontapés e recolhendo todo mundo para averiguação. Bastava abrir a porta e controlar os ânimos.

Pedi que aguardassem. Fui ao banheiro e lavei bem o rosto, para apagar resíduos do disparo. Depois, fui até a porta.

Era o chefe da segurança do hotel. Atrás dele, esticando os olhos, um punhado de hóspedes em roupas de dormir. Curiosos. Sempre os há, ricos ou pobres.

Pedi ao chefe da segurança que entrasse. Ele entrou, com aquele olhar de ameaçadora suspeita que todos do ramo, policiais, seguranças, vigias, leões de chácara, usam para intimidar os incautos. Normalmente, procuro deixá-los satisfeitos e finjo-me receoso diante daquela atitude. Não tenho por que contrariá-los de graça.

Trouxe o chefe da segurança para dentro do quarto. Pedi-lhe mil desculpas pelo acontecido. Mostrei-lhe uma identidade que me dizia membro de uma agência de segurança nacional e me autorizava o porte de arma. O olhar duro deu uma amolecida.

Disse-lhe que estava com uma acompanhante e que, nesse instante forcei um sorrisinho sacana, houvera um acidente durante uma de nossas brincadeiras na cama.

Aquele quarto de hotel era, na verdade, um conjunto de sala, quarto e banheiro, usualmente chamado de suíte. Estávamos na sala. O chefe da segurança disse-me que queria ver minha acompanhante, para se certificar de que tudo estava bem.

Abri a porta do quarto, Alícia estava saindo do banheiro, nenhuma arma à vista. Ele se deu por satisfeito.

Antes de nos despedirmos, pedi-lhe discrição e coloquei em sua mão uma quantia que devia equivaler a dois meses de seu salário. A linguagem universal. O olhar de cana dura desmanchou-se de vez e ele saiu me desejando uma ótima estadia e se pondo ao meu dispor para o que fosse necessário.

Voltei para o quarto. Alícia estava sentada na cama, cheia de lágrimas correndo de seus olhos.

— Agora você vai me matar?

Olhei-a, sem saber que resposta dar. Não, eu não a mataria. Eu estava com raiva, com muita raiva. Mas jamais a mataria. Não agora, que sabia que ela me amava.

A carne é fraca. E fraqueza é coisa que se encontra em qualquer lugar. Amor, não.

Para dar vazão à irritação que ainda sentia, peguei o revólver com munição verdadeira e silenciador em meu criado mudo e joguei-o no colo dela.

— Pronto, pode terminar o serviço. Com esse daí não vai ter erro nem barulho.

Ela pegou o revólver e o largou no criado mudo do seu lado. Olhou-me, como se quisesse dizer algo, mas só conseguiu me abraçar forte e cair num choro convulso.

Eu também a abracei. Eu também chorei.

E nos beijamos.