terça-feira, 27 de março de 2012

o dia em que deus saiu do armário

                   Deus vivia na escuridão, nada sabia de nada além da escuridão. Havia cheiros, especialmente um, que depois ele viria a aprender ser o de mofo, desagradou-o desde o início.

                   Sua vida era assim, nada de mais nem de menos, sempre escura, o que não chegava a ser mau para quem só conhecia o escuro. Quer dizer, ele também conhecia a claridade, claridade tão forte que equivalia à escuridão, claridade que nada permitia ver além da brancura total, sem contorno.

                   Tudo que ele via, nos breves instantes em que saía da escuridão, era isto: a claridade, claridade insuportável, uma luminosidade impossível, na qual nada se distinguia, aquilo que qualquer um vê quando passa do escuro total para uma luz muito intensa. Ofuscamento.

                   Havia sons, sons que Deus ouvia não distantes, mas abafados, como se vindos do outro lado de uma parede, como de fato vinham, do outro lado de uma parede não muito espessa nem muito sólida. Não, a parede era fina, de madeira.

                   Mas havia vozes, vozes havia, às vezes uma só. Quando as vozes ficavam altas, mesmo quando era uma só, se a voz vinha alta, agressiva, Deus já sabia ser praticamente certo que o arrancariam da profunda escuridão e o colocariam na estonteante claridade para logo em seguida o devolverem às trevas originais.

                   “Anda, moleque, come tudo!”

                   “Não quero!”

                   “Come tudo, que eu estou mandando!”

                   O moleque se fecha num silêncio hermético.

                   “Está bem, foi você que pediu! Deus vai te castigar!”

                   Nota-se um abalo na postura do menino, seu olhar deixa transparecer uma dúvida, um tremor.

                   A mãe, notando o esmorecimento do filho, dirige-se a um armário, põe a mão no puxador de uma porta, bem conhecida do garoto, que cada vez menos consegue dissimular o medo.

                   “Eu falei que Deus ia castigar. Não falei?”

                   O menino se encolhe por dentro, tomado por terrores abissais.

                   A mãe abre a porta do armário e puxa Deus lá de dentro, segura-o pelas axilas e o sacode na frente do garoto, fazendo sons supostamente fantasmagóricos. O moleque se rende. Com lágrimas nos olhos, começa a comer sôfrego, quase engasgando, no afã de se livrar daquela presença apavorante. Deus volta para o armário e a vaca, ou melhor, a mãe canta vitória:

                   “Eu não falei que Deus castigava?”