quinta-feira, 14 de abril de 2011

esta é comprida...

AMOR E DOR

Não é de agora. Já de algum tempo. Ninguém fica mais jovem ao envelhecer. Óbvio. Mais fraco, sim. De corpo. De alma.

Quando me passaram o serviço não vi, não pressenti problemas. O alvo era conhecido. Tudo bem, não seria a primeira vez. Ou seria. O alvo era o Alves.

Não tenho amigos. Tivesse-os, o melhor bem poderia ser o Alves.

Não era. Estivemos juntos muitas vezes, fizemos várias viagens a serviço. Mais de uma vez, a vida de um dependeu da ação correta do outro.

Eu conhecia seus hábitos. Não foi difícil encontrá-lo.

Ele se hospedara num hotel do centro. Parecia bêbado. Parecia lúcido.

Seria muito tolo de minha parte crer que o pegaria de surpresa. Ele já me esperava. Se não a mim, a um outro qualquer.

Vá lá que o fato de ser eu possa tê-lo surpreendido. Provável, porém nada que chegasse, ao menos, a acelerar um pouco o coração.

Quando ele entrou no quarto, eu já estava lá dentro, sentado na única poltrona.

Sem cumprimentos. Ele só se largou na cama e se deixou ficar, olhando para o teto.

— Me desculpe, estou muito bêbado e muito cansado. Vou dormir.

— Você sabe por que estou aqui?

Pergunta imbecil.

— Sei. E você, sabe por que está aqui?

— Fui contratado.

        De olhos fechados, ele deu uma risadinha que morreu num sorriso.

Fez-se silêncio. Ele, de olhos fechados, ainda sorrindo, emitiu um ronco. Dormia. Eu, de pé diante da cama, o .38 com silenciador na mão inerte.

Não sei se sua cara era triste. Parecia cansado, bem cansado, e suas feições, velhas, bem mais velhas que sua idade.

Por que eu estava lá? Normalmente não nos diziam por que devíamos fazer um trabalho. Só nos indicavam o alvo e nos davam um prazo. Pagavam bem.

O Alves começara a falhar. Eu sabia. Eis o porquê de minha visita. Velhice, fraqueza, cansaço. Ele deixara escapar seu último alvo. Os rastos desse fracasso poderiam levar a muitos, produzir muitas prisões, revelar máculas de muitas reputações ilibadas.

Ao sair do quarto do Alves, não fui para casa. Não achei prudente. Procurei um hotel de luxo num bairro nobre e telefonei para Alícia. Pedi-lhe que passasse na minha casa e me trouxesse algumas poucas coisas que necessitaria para ficar fora por um tempo. Ou para sempre.

Havia muito que eu deixara de chamar outras mulheres. Só me sentia bem com Alícia. Nossa relação ultrapassou o aspecto profissional e já de um bom tempo tínhamos algo que talvez se pudesse chamar de namoro. Ela não queria mais receber por suas visitas e, sempre que precisávamos desabafar, procurávamos um ao outro.

Quando ela chegou, a primeira coisa que quis foi saber por que eu estava me escondendo.

— Não fiz o que esperavam de mim.

O Alves estava vivo. Ou, pelo menos, assim eu o deixara lá, naquele quartinho sórdido no centro da cidade.

Sem mais perguntas. Ela pegou uma cerveja para mim no frigobar. Perguntou o que eu queria comer. Respondi-lhe que nada. Ela ligou para a cozinha e ordenou alguns sanduíches quentes. Disse que estava com fome e que, mais tarde, eu também havia de querer comer.

Depois ela se sentou no sofá em que eu já estava e deitou minha cabeça em seu colo, acariciando-me o cabelo. Ligou o televisor e começou a passar os canais a esmo.

O sanduíches chegaram. Cada um de nós comeu um.

Mais tarde, na cama, depois de uma trepada meio banal, deitei-me de costas e, fingindo dormir, pensei nas opções de fuga e se eu gostaria que Alícia fosse comigo.

Era impossível dormir. A cabeça confusa. Não conseguia parar de pensar. E pensava desordenadamente. Alícia, do meu lado, parecia ter pegado no sono.

Eu também pensava no Alves, se ele conseguiria, ou mesmo se queria, escapar. Algum tempo depois espalhou-se a notícia de que ele tinha se matado. Nunca vi corpo, nunca vi sepultura, nunca pude saber o que lhe aconteceu de fato.

Sem que eu notasse, o sono veio. E sonhos, de que não me lembro.

Não me lembro porque não costumo mesmo me recordar de meus sonhos. Não me lembro também porque fui despertado de modo bem particular, por um ruído bastante meu conhecido, o de um cão de revólver sendo armado.

Abri os olhos. Alícia, de pé, diante de mim, com um .38 apontado para a minha testa.

Fiquei triste, fiquei surpreso, mais triste que surpreso. Ali estava a pessoa em quem mais confiei em minha vida, com uma arma apontada para a minha cabeça, no justo momento em que esta cabeça ia ficar a prêmio na praça.

Alícia fora posta junto de mim para me vigiar e eu nunca percebera isso. A carne é fraca. O coração, ainda mais. Olhamo-nos, a arma entre nós.

— Acredite, eu não queria te dar esta decepção.

Permaneci mudo. Ela apertou o gatilho, a espoleta foi detonada.

Sempre gostei do calibre .38. É meio que um automóvel popular das armas de fogo. Em todo lugar se encontram armas e munição .38, por excelência a escolha preferencial do homem médio. Todo mundo tem, todo mundo sabe mexer, tem a força suficiente para o que, em geral, preciso fazer e é a arma que mais facilmente desaparece na multidão.

Fiz do .38 minha ferramenta básica de trabalho. Apenas excepcionalmente faço uso de outros calibres, ou de outras armas. Faca ou .22, quando a morte deve ser dolorida, longa. Corda, ou qualquer outro instrumento constritor, quando devo passar por um detector de metais para chegar ao alvo. 9mm ou .40, quando as suspeitas devam recair sobre policiais ou outras autoridades. Explosivos, quando não há outro jeito. Sempre me recusei a usar veneno, coisa de viado, e fogo, muito difícil de controlar.

Tirante raras situações especiais, sempre vou de .38. Costumo carregar dois comigo. De noite, quando vou dormir, sempre deixo um deles num lugar evidente, bem fácil de encontrar, carregado com balas de festim. O outro fica comigo, bem perto, sob o travesseiro, o que não é nada confortável, ou na gaveta do criado mudo, ou ainda debaixo da cama, carregado preferencialmente com balas de ponta oca e, também preferencialmente, com um silenciador atarraxado na ponta do cano. Quase sempre é melhor não fazer barulho.

Alícia apertou o gatilho. Eu sabia que ela não viera armada, pois mexi em sua bolsa para pegar cigarros, nosso relacionamento incluía essa espécie de liberdade.

Nas coisas que ela me trouxera de casa também não havia arma. Eu verificara, não por suspeita, mas só para me assegurar de que nada importante fora esquecido.

Sua bolsa estava limpa. Sua roupa era muito justa. Não tinha onde ela esconder um revólver do tamanho daquele posto na minha cara.

Alícia disparou, houve o estampido. Esse é o momento em que normalmente me aproveito para pegar o revólver perto de mim e, digamos, liquidar a fatura. Meu pretenso assassino ainda se encontra sob o efeito do disparo, certo de me haver matado. A coisa com que ele menos conta é com uma pronta reação do suposto defunto, eu, no caso. Esse ardil já me salvou a vida mais de uma vez.

Houve o estampido. Um barulho altíssimo, que decerto me provocaria alguma perda auditiva permanente. Ela permaneceu de pé, do jeito que estava antes de atirar, parecia petrificada. Não era possível que fosse uma novata, mas agia como tal. Ninguém, em sã consciência, mandaria uma pessoa totalmente crua para cuidar de mim.

Me movi. O som da explosão ainda ecoava por toda a minha cabeça. Gritei um palavrão bem alto, mal me escutei.

Sentei na cama. Alícia, linda, fraca, continuava imóvel, a arma ainda segura pelas duas mãos, mas apontada para baixo.

Havia lágrimas em seus olhos, e um ligeiro tremor, não sei onde.

Dei um suspiro fundo.

Tinha gente batendo na porta do quarto, vozes falando ao mesmo tempo. Eu precisava atender antes que resolvessem chamar a polícia.

Aquele era um hotel de alto padrão, não um pardieiro de beira de estrada ou centro de cidade. A polícia só entraria lá se fosse solicitada, nunca chegaria abrindo caminho a pontapés e recolhendo todo mundo para averiguação. Bastava abrir a porta e controlar os ânimos.

Pedi que aguardassem. Fui ao banheiro e lavei bem o rosto, para apagar resíduos do disparo. Depois, fui até a porta.

Era o chefe da segurança do hotel. Atrás dele, esticando os olhos, um punhado de hóspedes em roupas de dormir. Curiosos. Sempre os há, ricos ou pobres.

Pedi ao chefe da segurança que entrasse. Ele entrou, com aquele olhar de ameaçadora suspeita que todos do ramo, policiais, seguranças, vigias, leões de chácara, usam para intimidar os incautos. Normalmente, procuro deixá-los satisfeitos e finjo-me receoso diante daquela atitude. Não tenho por que contrariá-los de graça.

Trouxe o chefe da segurança para dentro do quarto. Pedi-lhe mil desculpas pelo acontecido. Mostrei-lhe uma identidade que me dizia membro de uma agência de segurança nacional e me autorizava o porte de arma. O olhar duro deu uma amolecida.

Disse-lhe que estava com uma acompanhante e que, nesse instante forcei um sorrisinho sacana, houvera um acidente durante uma de nossas brincadeiras na cama.

Aquele quarto de hotel era, na verdade, um conjunto de sala, quarto e banheiro, usualmente chamado de suíte. Estávamos na sala. O chefe da segurança disse-me que queria ver minha acompanhante, para se certificar de que tudo estava bem.

Abri a porta do quarto, Alícia estava saindo do banheiro, nenhuma arma à vista. Ele se deu por satisfeito.

Antes de nos despedirmos, pedi-lhe discrição e coloquei em sua mão uma quantia que devia equivaler a dois meses de seu salário. A linguagem universal. O olhar de cana dura desmanchou-se de vez e ele saiu me desejando uma ótima estadia e se pondo ao meu dispor para o que fosse necessário.

Voltei para o quarto. Alícia estava sentada na cama, cheia de lágrimas correndo de seus olhos.

— Agora você vai me matar?

Olhei-a, sem saber que resposta dar. Não, eu não a mataria. Eu estava com raiva, com muita raiva. Mas jamais a mataria. Não agora, que sabia que ela me amava.

A carne é fraca. E fraqueza é coisa que se encontra em qualquer lugar. Amor, não.

Para dar vazão à irritação que ainda sentia, peguei o revólver com munição verdadeira e silenciador em meu criado mudo e joguei-o no colo dela.

— Pronto, pode terminar o serviço. Com esse daí não vai ter erro nem barulho.

Ela pegou o revólver e o largou no criado mudo do seu lado. Olhou-me, como se quisesse dizer algo, mas só conseguiu me abraçar forte e cair num choro convulso.

Eu também a abracei. Eu também chorei.

E nos beijamos.