domingo, 8 de março de 2015

CEGA CEGUEIRA

vida
ignorância sem saída
a casa de portas escancaradas
gritos
lágrimas
olha lá
mudou porra nenhuma

morre-se aos montes no mundo
solidão sem solução
no meio do imenso amontoado de gente
transbordando pelas calhas da casa
sem nem uma cadeira mísera
pra sentar e esperar esperar esperar
até nunca vir
e tome espera

e adivinha o que mais
isso mesmo
cansei de repetir o nome do fato
mas o fato não se cansa de se repetir

pés juntos no revertere ad locum tuum
em paz comendo grama pela raiz
fato certo a termo indeterminado
cada dia dia menos
até que se fecha a tampa

domingo, 1 de março de 2015

MUNDO PERDIDO
estamos perdendo o mundo
perdidos no meio do mapa
gps na mão
dinheiro no bolso
sem saber onde
sinto tanta saudade do que não vivi
antes de mais nada
saudade de não ser
profundamente
esquecimento lembrança
o que fosse
não era vida nem morte
simplesmente era
ou não era
e eu desentristecido
simplesmente não sendo

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

QUESTÃO DE CLASSE

         Um dia, a mulher foi chegando com aquela carta de “tu nem imaginas”.
         Eu tinha quantos anos? Poucos. Comparados aos atuais, pouquíssimos.
         Eu era um poço de ignorância. E tinha consciência disso.
         Abençoados os ignorantes que se pensam profundezas de erudição. Mentes mínimas, infinitesimais mesmo. E eles, de dentro daquele cubículo repleto de vácuo, presumem-se senhores de todo o saber universal.
         A verdadeira felicidade reside na falta de consciência.
         Sim, porque a ignorância, quando acompanhada da consciência da vítima sobre seu estado de inanição intelectual, converte-se numa fonte de angústia.
         Bem-vindo à minha mente.
         O sujeito sem consciência, entretanto, vive no melhor dos mundos, graças justamente à sua falta de saber, que vai ao ponto de ele nem saber que não sabe.
         Encerrado na estreiteza de sua suposta ilustração, o camarada supõe-se o senhor do mundo e sai por aí, qual desfilasse com um cetro na mão e uma coroa na cabeça. Ele aprecia admirado as dimensões enciclopédicas de sua quitinete mental e diz para si mesmo: “Caralho! Eu sou muito foda”.
         Não duvido que haja felicidades maiores, mais duradouras e, acima de tudo, mais autênticas do que essa.
         Mas, na tranquila, o fato é que, comparado ao meio ignorante – aquele que, apesar de sabedor da própria ignorância, não consegue, por mais que tente, se livrar dela, – o ignorante completo é um ser com pleno potencial para a felicidade.
         Moral da história? Viva os tapados! Muito embora eu sinta uma indizível pulsão de matá-los muito mais que lentamente.
         Mas, dizia eu, lá um dia a mulher se chegou a mim. Estava estampado naquela cara que havia algo a ser dito, algo de capital importância.
         Eu tinha – e ainda tenho – a dolorosa consciência da profunda ignorância em que eu vivia imerso.
         Provavelmente por conta disso, entretanto, eu, das profundezas da minha própria insipiência, não era capaz de aferir a ignorância alheia. Dessa forma, aceitava todas, ou quase todas, as informações que me eram passadas, sem filtrá-las segundo a qualidade da fonte.
         Como seja, ante o comportamento dela, preparei-me para receber uma revelação bombástica sobre a gênese do cosmo.
         Reconheço agora que coloquei minha expectativa um tanto além do razoável. Também, convenhamos, eu era inteiramente criança e minha principal fonte de conhecimento era aquela mulher. E ela se divertia em me manobrar.
         E vai daí que, depois da previsível encenação, ela despejou a verdade: “Nós somos classe média”.
         Pensei que seria acometido por uma crise de caganeira. Eu não sabia o que era aquilo, classe média, só sabia que não era bom.
         Eu esperava algo do tipo: “Olha, na verdade, nós somos bilionários, descendemos de uma família nobre. Só estamos aqui, nesta vidinha, porque aceitamos participar de um experimento antropológico, submetendo-nos ao padrão classe média por um período limitado. Logo tudo vai acabar e voltaremos ao nosso palácio na Côte D’Azur”.
         Mas não, a verdade verdadeira estava bem ali, nua. Algo lá, bem dentro de mim, dizia-me.
         Eu era classe média.
         Senti-me atropelado por um transatlântico.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

NINGUÉM É INTEIRAMENTE NADA, MAS QUALQUER UM PODE SER INTEIRAMENTE ODIOSO

         Ninguém é inteiramente bom. Ninguém é inteiramente mau. Todos temos um pouco, ao menos, de cada um dentro de nós.
         Quando me deparo com alguém que aparenta ser inteiramente mau, sei haver algo de errado no que vejo. O mais provável é que eu esteja diante de uma farsa, uma farsa que, via de regra, envolve o sentimento de medo e a necessidade de se proteger. Quer dizer, a pessoa se faz de má para infundir medo, antes que o medo lhe seja infundido por outrem. Falo de experiência própria.
         Quanto à possibilidade de o indivíduo ser genuinamente mau, considero-a praticamente inexistente. É mais que raríssimo encontrar gente que mostre de cara como realmente é. Num caso assim, de qualquer modo, ainda haveria a sinceridade do sujeito para ser apreciada, embora eu, provavelmente, buscasse manter a maior distância possível do camarada.
         O pior, entretanto, é quando dou de cara com gente que aparenta ser o retrato da bondade. Esse é o tipo que me assusta. Agradáveis, solícitos, sorridentes, eles vão se expandindo em torno dos outros, envolvendo-os como barbante em carretel, derramando-se em mesuras, cortesia e bons modos enquanto preparam o bote.

         No momento em que se é atingido por um desses bondosos aparentes, nem dá para perceber a maldosa ardilosidade encoberta sob aquela cândida fachada. O mais das vezes, só muito depois descobrimo-nos vítimas da dissimulação, da falsidade, da perversa frouxidão de um fraco de má índole, contra quem nada se pode fazer, ao menos de modo lícito, pois o escroto, aos olhos do mundo, sempre se comportou com candidez, benevolência, tolerância, cordialidade. Nada a dizer, nada a fazer, a não ser que você aceite depois se ver tendo que se explicar perante um delegado, um promotor ou um juiz.

domingo, 25 de janeiro de 2015

NÃO SEI SE ESTOU AQUI

todo mundo quer se encontrar
sei não
mas lá vai o povo
em busca da coisa

como se investe tanto no que não se conhece
e se depois tudo que se tiver for nada
ou pior
algo de que se queira distância

nossa descobri meu verdadeiro eu
e sinceramente
achei-me um saco

afora os momentos em que eu gostaria mesmo de nem saber onde estou
naquela segunda de ressaca
poder ligar pro trabalho
seguinte pessoal
não vai dar pra ir
não sei onde estou
nem quando vou voltar

um pouco de desencontro

até que nem faz mal

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

EU NÃO SOU BOFF
         Não sei se sou Charlie. Mas acho que estou mais para ser que para não ser.
         A bem da verdade, até quatro dias atrás, eu não fazia ideia do que fosse Charlie. Agora, em meio à avalanche de comoção gerada pelo atentado, só quem vive numa concha talvez não saiba da existência do semanário francês.
         Acontece, todavia, que, do teor do semanário propriamente dito, pouco se sabe e o pouco que se sabe, via de regra, foi sabido por intermédio de terceiros. Eu mesmo tive oportunidade de ver apenas umas poucas charges, todas de um humor bastante mordaz, com referências nada edificantes a dogmas religiosos. Gostei. Vai daí que, agora há pouco, li um artigo de um religioso identificado com a esquerda, em que ele repudia com veemência o estilo de humor do Charlie Hebdo e censura, entre outras coisas, os desenhos que representavam Maomé, cuja simples figuração ofende a fé muçulmana.
         Segundo o raciocínio do articulista, retratar o fundador do islamismo equivaleria, como afronta, ao ato de chutar a estátua de um santo católico.
         Não sei onde esse senhor deixou sua capacidade de análise, mas eu lhe recomendaria, com todo respeito, que a pegasse de volta e a mantivesse sempre junto de si e que, acima de tudo, a usasse com mais frequência e acuidade. Um pontapé não é a mesma coisa que uma representação imagética e nunca vai ser.
         Não creio despropositado afirmar, inclusive, que, com exceção das práticas desportivas, um pontapé sempre constituirá uma ofensa. Um pontapé é ofensivo para um cristão, um budista, um ateu, um índio, um negro, um branco, um asiático, um rico, um pobre, um homem, uma mulher e mesmo para um muçulmano. Todos se ofendem ao serem chutados. Eis a palavra-chave: todos.
         O pontapé, como instrumento de ofensa, é universal, atinge todos que dele são vítimas. Já a representação gráfica de uma pessoa não o é.
         Como disse, eu, tal qual o resto do mundo, conheço pouquíssimo do Charlie Hebdo. Apesar disso, não creio absurdo imaginar que, ao retratar Maomé, um dos objetivos da publicação fosse afirmar o direito à liberdade de expressão. Porque uma coisa é praticar uma ação universalmente tida por reprovável. Outra, bem diferente, é abster-se de fazer algo que, em si mesmo, nada tem de ofensivo ou agressivo, apenas porque uma parcela restrita da sociedade não gosta de que aquilo seja feito.
         Não falo aqui pelo pessoal do Charlie, mas, do meu ponto de vista, as charges com Maomé valeram, quando nada, para mostrar aos fanáticos que eles não podem impor seus dogmas a toda a sociedade. Ninguém pode obrigar um muçulmano a desenhar a imagem de Maomé. De igual modo, é, ou deveria ser, impensável que um muçulmano se arvore no direito de proibir que pessoas de outros credos retratem o profeta do islã, pois elas não podem ser obrigadas a seguir o mandamento da religião que não escolheram.
         Esse religioso articulista é ligado ao catolicismo, o que talvez explique por que se sentiu atingido pelo conteúdo do Charlie Hebdo, que também ataca, de modo bem contundente, o cristianismo. Do que vi, porém, os ataques são dirigidos àqueles pontos em que os cristãos buscam estender a toda a sociedade as restrições a que apenas eles, cristãos, deveriam livremente se submeter, principalmente no que se refere à diversidade sexual e à maternidade responsável. Quer dizer, o tal articulista provavelmente presta solidariedade aos muçulmanos por também se sentir vítima do humor implacável do semanário, que parece não ter um pingo de piedade com as fantasias totalitárias de grupos político-religiosos.
         E o artigo vai ainda mais longe, acrescentando que os muçulmanos, vítimas da pobreza e da discriminação, sempre são apresentados de forma preconceituosa no Charlie. Considerando que o Charlie Hebdo se refere aos muçulmanos que são preconceituosos, parece-me pertinente que as representações sejam negativas. O mesmo raciocínio vale para os cristãos preconceituosos.
         Aliás, dizer que as charges atingiram todos os seguidores de uma determinada religião é bem mais do que ir um pouco longe na avaliação dos desdobramentos de um fato. É querer afirmar, independentemente de argumentos, que a conduta do semanário é errada porque é errada e ponto final. Se, por exemplo, existe corrupção na polícia e alguém se refere à corrupção policial e, por conta disso, todos os policiais se sentem atingidos, tem-se aí uma indicação de que há algo errado com a polícia, não com quem aponta os erros da polícia.
         O religioso articulista também pega carona na análise canhestra feita por uma plumitiva qualquer das tantas que há por aí, comparando o Charlie Hebdo à revista Veja. Quem me lembrou a Veja, no entanto, foi o senhor articulista, que, sob o manto de uma argumentação aparentemente lógica e abrangente, desconsiderou aspectos relevantes para a compreensão do caso, como as causas defendidas pelo semanário, centradas essencialmente, repito, na liberdade de expressão, e torceu os fatos para dissimuladamente defender a religião como instrumento propagador de preconceitos.
         No fim, de modo muito mal disfarçado, ele não chega apenas à velha conclusão de que “Eles fizeram por merecer”, ele vai além e imputa ao jornal de esquerda a culpa pelas reações de direita que têm ocorrido em retaliação aos islamitas. Se isso não é forçar a barra, então não sei mais o que essa expressão significa.
         O artigo assinado por esse religioso recebeu o título “Eu não sou Charlie”. Não é nem nunca será, mesmo que queira.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

TUDO ME DIZ ONDE PARAR

papéis têm pautas
vias têm faixas
corpos têm medidas

no descampo aberto largo
a árvore só
única no meio do pasto
vê tão circunstantes
as bordas da existência

sem sermos mais que nós
nada de nós emana
nada alcança alguém
sem sabor sem cor sem odor nem fedor
apenas uma alma em bastão
sem ódio sem humor sem nem tristezas interessantes
incapaz sequer de um pum

ergue-se o muro da indolência
com tijolos de apatia
e argamassa de torpor

perde-se a ceifa por se estar sempre em atraso
a vida prossegue por obra do ócio

domingo, 4 de janeiro de 2015

UM E DEPOIS OUTRO E OUTRO E OUTRO E OUTRO

mais um dia
mais um
em que talvez haja felicidade
lá fora
aqui dentro
vá saber

ou quiçá um dia para singelamente
infeliz ser
sei lá porra

se for assim
seja ao menos dessas infelicidadezinhas
daquelas como aquelas febrinhas bestas da infância
lânguida e praticamente indolor

febrinha de dia dia e meio se tanto
livra-nos da escola
e põe-nos numa tarde de mimos diante da tevê

e no dia seguinte volta-se à vida
até com uma certa saudade
da branda melancolia