sábado, 12 de novembro de 2011

menos um

Escritor no sofá, prancheta com poucas folhas, caneta na mão, calor, certa umidade, calor, moscas, calor, mosquitos, calor, mutucas, calor, muito calor e mais calor. Nunca vou conseguir pensar com esta porra de clima, pensava o escritor.

Nunca se dizia escritor. Se um sujeito parasse na frente dele e dissesse sou escritor, ele riria, riria pra valer da cara do infeliz, ainda que só por dentro. Ria de si mesmo quando se pensava escritor e isso já era riso suficiente para humilhá-lo. Podia passar sem zombarias alheias, nunca se dizia escritor.

Ainda que fosse escritor, escrevia tão pouco e, do pouco que escrevia, tão pouco ao menos chegava perto de prestar. Se se dissesse escritor, estaria se expondo não só ao ridículo de soar pretensioso, como também ao de passar por mentiroso.

Pois então o escritor naquele calor filha da puta empenhava-se em fazer o que nunca fazia: escrever.

E aí do nada apareceu o porreteiro e, antes que se pudesse abrir a boca, sentou uma puta duma bordoada na cabeça do escritor, que nem mudou de posição, ficou lá, no sofá mesmo, o queixo encostado no peito de um modo estranho, o olhar quase tão morto quanto em vida, a testa rachada e sangrada; a caneta, uma bonita tinteiro com pouquíssimo uso, rolou da mão para o assento do sofá, a prancheta permaneceu onde estava, sua extremidade inferior presa entre a coxa e a tremenda pança do defunto.

O porreteiro então pegou os escritos do escritor e deles fez uma fogueira que bem pouco durou.

“Menos um.”

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

deus não existe

Difícil, impossível mesmo dizer por que alguns lampejos vêm à mente em um dado momento, em um certo lugar. Eles vêm, eis tudo.

Foi assim com Deus. Lá estava ele em seu escritório sem pensar em nada, explorando sexo na internet, e súbito a certeza brotou dentro de si pétrea, arraigada, inapelável.

“Puta que me pariu! Eu não existo!”

Parou e encarou por mais um momento seu vazio mental, quase que uma baba lhe escorre do canto da boca.

“Nem princípio nem fim? Nem primeiro nem último? Nem alfa nem ômega? Nem boca nem cu?”

Quase se distraiu com um esplêndido par de seios que surgiu na tela do monitor, fruto da pesquisa que vinha fazendo. Mas logo deu por si e voltou à pasmaceira original.

“Que bosta! Acho que perdi a fé em mim...”

Ligou para a secretária.

“Dona Maria, cancela todos os meus compromissos da semana.”

“Está bem, Doutor.”

“Se perguntarem, diga que fui fazer uma desintoxicação nos States. Pensando melhor, cancele meus compromissos do mês.”

“Do mês?”

“É! Alguma objeção?”

“Perdão, Senhor, é que é tão raro o Eterno desmarcar Sua agenda.”

“Pois guarde sua curiosidade para a senhora e faça o que Eu mando!”

“É pra já! Fiat voluntas Domini!”

Era nisso que dava ficar de intimidade com a criadagem. No casamento de dona Maria, até hoje não sabia bem como (sempre bebia demais, o que, volta e meia, causava uns brancos fatais na Divina Onisciência), terminara Ele, Deus, no leito nupcial com dona Maria (menos mau que tenha sido com ela e não com o marido, forçoso reconhecer), enquanto José, o recém-casado, roncava no sofá da sala, de porre.

Na manhã seguinte, a velha música: despertar numa cama estranha, num quarto estranho e dar de cara com uma cara estranha a fitá-lo sorridente. Mas a cara não era estranha, era a cara de dona Maria, casada na noite anterior, e não com Ele.

“O Senhor salvou minha noite de núpcias. Fosse eu contar com aquele lá (indicou com o queixo a sala, onde José estava)... Bebeu mais que os convidados, arranjou briga com todos os garçons e até com o motorista da limusine, que por isso foi embora e nos deixou a pé. Ainda bem que o Senhor se ofereceu para nos trazer até aqui.”

“E aí, nós dois... Como foi que aconteceu?”

“O banana apagou dentro do carro, ainda no caminho. Não acordava de jeito nenhum, a gente trouxe ele arrastado para cá. Daí eu comecei a chorar de decepção, o Senhor me abraçou, eu encostei a cabeça no seu peito, a gente se beijou e... terminamos aqui.”

Deus se sentia no limiar de uma crise de pânico, especialmente por causa do olhar de dona Maria, meloso.

“Bem que o Gabriel me avisou.”

“Gabriel?”

“Ele trabalha na expedição, todo dia traz a correspondência e me entrega. Um anjo de pessoa. Com todo respeito, ele me disse que o Senhor nunca dá ponto sem nó.”

Ela o encarou com aquele sorriso. Apavorante.

“Acredita que eu era virgem?”

“Mas nem que a vaca tussa!”

“Era sim, bobão.”

Da inusitada aventura houve um fruto, como é do conhecimento de todo o mundo cristão.

Ao contrário de Deus, dona Maria não sentiu nem uma gota de vergonha do acontecido. Longe disso, quando descobriu que fora emprenhada por Deus, fez todo alarde possível e não se teve notícia de repúdio a seu ato, tudo que se via era admiração e inveja. A dona fora comida pelo Todo Poderoso, ora. José, por sua vez, tornou-se o manso mais notável da história da humanidade, registrou e criou o Filho do Outro sem dizer um ai. Justiça se faça, que podia ele contra o Criador?

O fato de ter em casa o Filho de Deus trouxe ao casal fama e prestígio. A clientela da marcenaria de José cresceu exponencialmente e Maria foi rapidamente promovida e recebeu um aumento substancial no salário, tornando-se secretária-chefe do Onipotente.

O tempo passou, o Menino cresceu. Quando do faniquito divino ora relatado, Jesus já estava na casa dos vinte e vivia tendo atritos com José, que não podia mais com a falta de consideração daquele borra-botas, toda hora a se proclamar o Filho de Deus.

Depois de aplicar a esfrega em dona Maria, Deus pegou o celular e ligou para seu motorista.

“Cristóvão, por onde que você anda?”

Cristóvão respondeu do outro lado da linha, uma resposta que Deus ouviu sem muita paciência.

“Tá bom, tá bom! Então termina logo essa troca de óleo e vem me pegar. Onde? Aqui na Sede, porra! Tá de sacanagem comigo? E vê se anda logo!”

Voltou-se para dona Maria.

“Sabe do Cris?”

“A esta hora, certamente está na faculdade.” Jesus fazia medicina, queria se especializar em ginecologia para ver se conseguia enxergar algum sentido nessa história de concepção imaculada (por que os pais mentem tanto para os filhos?).

“Eu preciso falar com Ele.” Por que com Jesus? Porque era Seu Filho, alguém que, sem dúvida (sem dúvida?), existia e que Ele pusera no mundo. Junto do Moleque, talvez conseguisse recuperar a fé em Si (ou Se convencer de que ela estava perdida para sempre).

“Liga pro celular Dele.”

A limusine divina parou em frente à entrada principal da faculdade de medicina. Jesus pulou pra dentro.

“E aí, Cristóvão?”

“E aí, Cris?”

Deus no compartimento traseiro, já no terceiro uísque, um havana pela metade entre os dedos. Sobre um assento, um espelhinho todo salpicado, e Nosso Senhor com um bigodinho branco que não era, de modo algum, resultante da ingestão de um copo de leite.

“Porra, Pai, não é nem meio-dia e o Senhor já tá no grau!”

“Enfia o sermãozinho no cu que Eu tô só começando! É isso mesmo! Eu vou enfiar o pé na moranga e não tô com saco pra crítica!”

“E pra que o Senhor Me chamou?”

“Pra Te levar pra bandalheira. Topas?”

Jesus já conhecia as farras do Pai, pra lá de memoráveis.

“Tá, tô dentro. Agora Me conta o que aconteceu. Andou lendo de novo o Jabor? O Olavo? O Mainardi? Alguma coletânea do Corção?”

“Que nada! Descobri que não existo.”

“Mas é claro que o Senhor existe!”

“Mas agora me convenci de que não sou o Criador que fez do homem Sua imagem e semelhança. O que sou é a criatura, imagem e semelhança do meu criador, o homem, que me inventou para ter uma justificativa transcendental da governança autocrática.”

“E por que esse raio de convicção justo agora?”

“Não sei. Hoje, mais cedo, Eu tava buscando putaria na internet e de repente o browser deu pau. Fiquei com raiva, com vontade de fuder com tudo. Daí resolvi parar tudo, todo este planeta, o universo inteiro. Proferi o Verbo e nada, absolutamente nada aconteceu.”

“Vai ver Tu não se concentrou legal.”

“Conversa! Eu sou Deus, porra! Ou ao menos deveria ser.”

“Tá bom! Mesmo assim, e daí? Cê continua sendo, pra todo o zé-povinho, o Todo Poderoso, o Tri-fodão. Aproveita, ora! Só se vive uma vez!”

“Tá certo, cê tá certo. Verdadeiro ou não, eu tô aqui, cheio de grana, cheio de um poder que me foi dado sem que eu pedisse. Vamos cair na patifaria!”

Conseguiram juntar uma galera (Lúcifer e seu filho mais velho, Lúcifer Olegário, Tomé, Mateus, João, Pedro, Joseph Smith, Paulo, Belzebu, Zoroastro, Asmodeu, Sarney, Bento, Dalai, Ellen Gracie, Edir, Mohandas, Hillary, Stalin, Dercy, Evita, Lincoln, Collor, Pinochet, Tatcher, Mao, Adolph, Maomé, Churchill, Nixon, Bush pai e filho e mais uma porrada de gente), fretaram um jato e foram para Las Vegas, onde conseguiram aterrissar no aeroporto, apesar da bebedeira geral e da insistência do Profeta em que se arremessassem, com avião e tudo, contra o prédio mais alto da capital do jogo.

Depois de duas semanas de esbórnia ininterrupta, o que se via era só corpos nus, peças de roupa largadas por tudo quanto é lado, garrafas vazias, seringas usadas, comprimidos, fichas de jogo e mais um monte de coisas estranhas, inclusive um bode a degustar lençóis e um grupo de anõezinhos vestidos de couro tacheado e acorrentados, tudo espalhado por tudo quanto era canto da maior e mais cara suíte de Las Vegas.

Amanhecia, finalmente todos estavam esgotados e dormiam ou permaneciam desmaiados no chão, sobre os móveis, na banheira de hidromassagem, onde fosse. De repente, do meio da balbúrdia, emergiu uma cabeça desgrenhada. Era madre Teresa. Ela se arrastou até onde Nosso Senhor estava apagado com uma piranha em cada braço e cutucou Seu ombro.

“Que que foi?” Perguntou o Criador.

“Porra, Deus, Tu num existe!”

“Foda-se!”

E o Criador aninhou Sua cabeça no farto seio siliconado de uma das piranhas.