segunda-feira, 12 de agosto de 2013

sei lá que dia
por que que a vida
cair morrer e mais tudo
até que um dia
a dádiva de nunca
se antes de existir
me fosse infundida
a certa ciência
do tempo de uma queda
a exata expressão numérica
dos tombos
não me houvessem enfiado tanta mentira
enquanto eu criança
certo de que nunca chegaria a andar
despencava pelos cantos da casa
e descobria que até quedas requerem talento
outro dia
tudo que me pedem é que eu esteja e não seja
ou será o contrário
ou nada disso
por trás de todo conhecimento há um boquiaberto babando
e um bando de fingidores despejando saber que não lhes pertence
a grande glória nacional
é a infelicidade sem tristeza
a violência pacífica
a flatulência inodora e insonora
a elogiosa maledicência
não sei com que cara saio hoje
só sei que não será a minha

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

viva o verde
         Vamos agora falar um pouco de um sujeito sabido como poucos. Sempre gosto de lembrar dele, pois vê-lo viver, ou não viver, nunca deixou de ser uma lição de vida, do avesso.
         Umas das facetas mais intrigantes da criatura consistia em seu abstruso relacionamento com — de que outro modo dizer? — o catarro. Sim, basta dizer que o camarada tinha uma doutrina, revelada apenas parcialmente, construída sobre o assunto, doutrina essa observada religiosamente.
         Sua crença profunda, eis a parte revelada do mistério, era de que catarro provocava retardamento mental. Várias vezes senti-me tentado a dizer-lhe que, especificamente no caso dele, isso nunca poderia acarretar-lhe mais problema, mas sempre acabava considerando de melhor aviso calar-me e admirar — só, silente e indene — o acerto de minha percepção.
         O sujeito era um fungador compulsivo, vivia de aspirador ligado, puxando pras caixas o que houvesse naquelas fossas. E todos sabemos o que há lá, não se trata propriamente de um manancial de leite e mel.
         E então era isto, o neandertal puxava a verdolenga pasta todinha. Porém, filosoficamente convicto de não poder engoli-la, porque seria um crime privar o Universo daquele exuberante colosso intelectual, fazia o óbvio, singelamente acomodava o volume nos recônditos de sua cavidade bucal, e, em vez de cuspir o troço o quanto antes, como o comum dos mortais, mantinha-o lá, entra ano, sai ano.
         O pretexto para aquela repulsiva degustação de fluido corporal era a inexistência de ponto adequado para expelir a gosma. E vai daí que ele sempre ficava com a coisa lá, a dançar com a língua, a servir-lhe de chiclete, sendo capaz de inventar desculpa para não se desfazer do bagulho mesmo que passasse ao lado de uma escarradeira nova e vazia.

         E ele grunhia, e ele guinchava, e ele gritava e atirava bosta em todos que se aproximavam das barras da jaula, mas tudo era feito sem nunca, jamais se desfazer de seu querido catarro.
com caminho ou sem caminho

         Há tanto perdi o caminho. Por mais que tente, não me lembro de onde o deixei. Fui negligente, não tomei as precauções devidas. Um dia, quando olhei pro lado, sumira. Até que não era um caminho mau. Quando nada, era um caminho.
         Ora, não sei por que minto. Ou sei. Força do hábito. Mentir é algo de muita relevância para mim, herança, algo praticado com afinco há gerações por meus familiares, paternos e maternos.
         Grávida de mim, barriga bem proeminente, minha mãe, se indagada, dizia sofrer de verminose em estágio avançado, a ponto de verter bichas pelas ventas. Vergonha da prenhez? Pode ser, não seria novidade. Antigamente, qualquer condição um pouco diversa da mais comum era vista com desdém. Exibir uma gravidez em público tinha seu tanto de embaraçoso, pois a maioria das pessoas na rua não estava grávida. Tempo já houve até em que se escondia a embuchada dos olhos do povo.
         Entretanto, embora eu já esteja numa idade mais para velha que para nova, convém ressaltar que também não sou tão velho assim. Ao que sei, o tempo de se ocultar gravidez foi bem anterior ao da minha concepção. E, afinal, pensemos um pouco, o que seria mais vergonhoso, em qualquer tempo, para uma mulher casada: uma gravidez, ou uma colônia de lombrigas? Não fica muita margem para dúvida, decerto.
         Pode-se ver daí que, para mim, a mentira faz parte do patrimônio genético. Se minto de graça, quanto mais para dar sumiço a verdades incômodas.
         Eis o caso da afirmativa com que abri este texto. Perder o caminho não é nada de que alguém possa se orgulhar, forte indicativo de negligência, prolífica fonte de frustração. Mas muito pior que perder o caminho é ser por ele, caminho, rejeitado.
         Foi o que me aconteceu. Lá um dia, totalmente de surpresa, fui pego pelos fundilhos e arremessado longe. Estatelei-me, mas não fiquei a perguntar por quê, já estava habituado a ser tratado feito lixo (mamãe, mamãe, mamãe...).
         Sabendo ou não sabendo, o fato é que a iniciativa não foi minha. No que dependesse de mim, lá eu teria permanecido. Ainda que melhores houvesse, eu já me habituara àquele, o que já é metade do caminho para a aceitação. A outra metade é não ter alternativa. E já estava pacificado, aceito em mim, o caminho era aquele, ótimo, vamos em frente, ou fiquemos parados, ou retrocedamos, mas tudo ali, naquele mesmo lugar. Jamais me ocorreu que o próprio caminho também tivesse seus juízos e, pior ainda, suas iniciativas.
         Porra, foi tão de surpresa que, na verdade, nem sei como aconteceu. Não sei se foi um pontapé, um tranco, uma chulapada, só sei que foi.
         Tentei voltar, mas ele não deixou. Fugiu de mim, atacou-me, escondeu-se, inventou desculpas. Apenas uma vez consegui surpreendê-lo, apareci do nada, peguei-o distraído, pulei em cima e num único pinote fui mandado pra fora novamente.
         Caí, machuquei-me. Reagi como um fresco, chorei, escrevi umas merdas de poemas, fiquei com medo de tudo. No fim, entretanto, aceitei a infelicidade como minha condição natural e o desencontro como meu grande meio de relacionamento com o mundo.

         E creio que continuei a viver apenas por ódio, por este ódio que sinto do caminho que me rejeitou.