sexta-feira, 30 de setembro de 2011

do perigo de respirar


Família na sala, tevê ligada, o filho tentando se fazer invisível, inaudível, inodoro, intátil, insípido.


“Olha lá, olha lá, pai, ele tá respirando de novo! Eu não falei? Para com isso, seu merda! Quem puxa aos seus não degenera!”

“Mas será possível que você nunca vai obedecer, seu inútil! Anda, para de respirar tanto, animal de rabo!”

“É, você tá respirando muito! Bem mal ceia quem come de mão alheia!”

Silêncio. A mãe e o pai de novo se voltam para o televisor. O garoto tenta aparentar uma imobilidade perfeita.

Passam uns quinze minutos.

“Ó lá, ó lá, ó! Eu vi, eu vi! Ele mexeu o peito duas vezes em menos de dez segundos! Tá só fingindo que não tá respirando, seu filha da puta! A raposa tanto vai ao ninho que um dia deixa o focinho!”

O pai acerta uma patada na cabeça do garoto, que a custo engole o choro para não apanhar mais e pede licença para sair da sala.

“Fica sentado aí, ô poia! Não me vai sair daqui para ficar respirando pelas minhas costas.”

Intervalo comercial. O pai comenta com a mãe uma notícia sobre o mundo comunista.

“Essa imprensa é toda vendida, tendenciosa! Onde já se viu? Perseguição política na União Soviética? Isso é tudo invenção de banqueiro judeu! Só porque lá mandam viado se tratar na Sibéria? Essa cambada de capitalistas tem inveja, isso sim! Inveja dos comunistas, que descobriram a cura da sodomia!”

“A cruz nos peitos, o diabo nos feitos!”

“E as batatas? As batatas soviéticas? Cada batatão, aquela beleza! Inigualável! Não tem americano capaz de plantar uma batata daquelas! Na União Soviética, que maravilha! Todo mundo come batata lá, tá ouvindo?! Todo mundo! A melhor batata do mundo!”

“Boa fama granjeia quem não diz mal da vida alheia!”

“E aquele clima, aquele clima sempre fresco! Ouviu? Nunca acredite nas mentiras desses jornais! Sibéria, temperatura sempre fresca!”

“Cada qual com seu igual!”

“Aquele lugar é maravilhoso! O Estado! O Estado toma conta de tudo! Todo mundo come batata da boa e ninguém peida na sala sem antes pedir licença! E é cada peido, cada peido que você precisa ver! Comunista, quando peida, é pra valer! Não é essas coisinhas frouxas que não dá nem pra esquentar os fundilhos!”

Convém ressaltar que o pai nunca estivera nem a menos de cinco mil quilômetros de nenhum país comunista e que tampouco era dado a ler, pois achava a leitura uma grande perda de tempo, ainda mais quando a televisão já fornecia toda a informação necessária de forma muito mais rápida e fácil. Tudo que ele falava do comunismo vinha da boca de conhecidos seus, gente tão lida e viajada quanto ele, gente que gostava de se dizer comunista só para chamar atenção.

“A palavras loucas, orelhas moucas!”

“Aquelas batatas, aqueles peidos, aquelas maravilhas! Todo mundo na escola, comendo batata, peidando, aprendendo e sendo curado da sodomia! Aquilo sim é que é país!”

Curto silêncio.

“E agora ficam aí, esses jornais, com essas mentiras!”

O menino aproveitou que os pais se distraíam com a conversa e procurou sorver o máximo possível de ar, mas a felicidade sempre dura pouco.

“Oia, oia, oia, pai! Oia ele lá! Respirando como se fosse um paxá! Ma ocê num tem jeito mesmo não, né, ô moleque! A ocasião faz o ladrão!”

Ato contínuo, os dois partiram para cima do filho. A mãe se encarregou das bofetadas, enquanto o pai segurou a cabeça do menino e fechou-lhe a boca e o nariz. Não demorou para que ele, o menino, começasse a se debater em desespero.

“Segura as pernas deste desgramado, mulhé! Segura, senão ele vai chutar a gente! Filho da puta, nunca vai ter respeito pelos pais!”

Os movimentos do asfixiado foram se tornando cada vez mais descoordenados, convulsivos, involuntários. O menino primeiro ficou vermelho, depois, roxo e, por fim, desfaleceu, cinzento, os lábios cor de chumbo.

Os pais deixaram-no lá mesmo, no chão da sala, e voltaram a sentar-se diante da tevê.

“A dor ensina a gemer.”

“Aquela batata comunista, aquilo sim é que é batata! Lá, quando eles fazem purê, é de bacia! Aquela fartura toda de batata!”

“Amor com amor se paga!”

“E os peixes comunistas? Lá os peixes são todos ensinados, todos eles saem da água pra cagar. Precisa ver, que beleza! Nas beiras dos rios e das praias tem aquele monte de banheiros estatais, tudo pra peixada descer o barro! Que beleza! Que organização!”

“Olha lá ele agora, pai, olha! Agora fica lá, esparramado no chão, se fazendo de morto. De casa de gato não sai farto o rato.”

“Ô rapaz, trata de levantar daí antes que eu perca a paciência!”

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Volta ao lar


Fim do dia, lá vinha o grande homem. Aquela reserva moral tanto podia vir mais cedo, direto do trabalho, quanto podia chegar mais tarde, vindo do puteiro, onde batia ponto com frequência e regularidade.


De qualquer modo, da labuta ou do lupanar, ele sempre chegava com a mesma postura de estátua equestre, muito embora viesse a pé. Evidente que, naquela cabecinha, o sujeito devia se imaginar o cavaleiro. A realidade, entretanto, informava que ele vinha de condução; vestia um terno daqueles, que se deformam à primeira olhada, gravata e camisa acompanhando o padrão; os sapatos mereceriam um capítulo à parte, um par por ano, sempre da mesma marca — cujas principais virtudes eram a feiura e o preço baixo, — capazes de emanar os mais pestilentos miasmas após meros trinta segundos nos pés, imagine então após meses naqueles pezinhos.

Ele entrava, passava por todos sem parar, no máximo meneava um pouco a cabeça — impossível saber se xingava, se cumprimentava, — e ia se aboletar diante do grande amor de sua vida: a tevê. Dali, só sairia para dormir; ali, só falaria no caso de algum corpo se interpor entre ele e a tela (“Vai sair da frente, ou quer levar porrada, filha da puta?!”).

Assim morria o dia naquela coisa, quer dizer, naquela casa.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Equinos e muares

Domingo. Voltando do clube para pegar o almoço em casa, onde a louca ficara, cumprindo seus deveres de doméstica.

Normalmente, aquela volta para casa aos domingos, depois da manhã passada no clube, era um alívio.

O menino não gostava de conviver com o louco. A louca vivia a dizer que o louco era um santo. O louco vivia a desprezar a louca, a enchê-la de chifres e a usá-la como empregada doméstica.

Aos poucos, as idas de domingo ao clube foram se convertendo numa maneira de o louco e a louca se evitarem. Ele, o louco, saía com os filhos para, supostamente, todos se divertirem juntos. Ela, a louca, ficava no lar — bom, talvez seja exagero chamar aquele portal do inferno de lar; digamos então que a louca ficava em casa, desfrutando de algumas horas longe dos filhos, dos quais ao menos os dois mais velhos eram-lhe insuportáveis. A louca ficava sozinha em casa, fazendo sei lá o quê, cozinhando, é fato, pois o louco esperava chegar e encontrar a boia pronta. A louca ficava sozinha em casa, cozinhando e fazendo o que mais as loucas usam fazer quando estão sozinhas em casa.

E os filhos lá, no clube, com o louco. O clube era relacionado ao banco estatal em que o louco trabalhava. Lá no clube ele encontrava seus colegas e juntos eles ficavam repetindo para si mesmos: “Puta merda! Como nós somos demais! Nossa! Me sinto tão foda por ser funcionário do imenso banco estatal!”

O menino ia para a piscina e gostava de mergulhar e ficar submerso o maior tempo possível. Ele adorava mijar dentro da água e pensava ser o único a fazê-lo. A infância e suas ilusões.

O terror maior do menino era ter de tomar banho com o louco — era bem nojento vê-lo sob o chuveiro. Ele não se ensaboava, ele se acariciava. Pura lascívia, na frente dum garoto de seis anos. Eca! Ele não se olhava, ele se contemplava. Ele gemia. Ele fungava. Ele suspirava. Justiça se faça, convém dizer que o espetáculo não era encenado para o menino. Este era simplesmente ignorado, como de hábito. Estavam no clube, no banheiro do vestiário masculino, aquela coisa detestável de vários chuveiros, um ao lado do outro, sem nenhuma separação física, vários homens tomando banho e podendo se ver, vários homens nus sem poder evitar a visão recíproca da respectiva nudez. Uma merda, ao menos para quem, como o menino, sempre achou o corpo masculino repugnante. E o sujeito lá, se adorando, libido a mil, passando a língua nos lábios e gemendo, quase babando. Supergay. Assustador. O menino não via a hora de se pirulitar dali e tentar, mesmo que em vão, apagar a cena da memória.

Sair daquele clube tinha um sabor de liberdade. Normalmente, significava ir para casa, almoçar e se afastar do par de loucos. Trancar-se no quarto, a sós com seus medos. Naquela casa, isso era o máximo de paz que se podia almejar.

Certos domingos, depois do almoço, saíam todos para visitar parentes, excelente oportunidade de torturar os primos menores, o que não deixava de ser agradável, mas nem estava próximo de ser a atividade favorita do menino.

Ele gostava mesmo era de ficar só. Ele e seus infinitos medos, que por muito tempo acreditou serem de seu exclusivo conhecimento.

Quis o destino, entretanto, que naquele dia, já a caminho de casa, o boçal visse, numa transversal, os cavalos.

Na infância, o pacóvio passara fome, além de outros apertos, na roça, e por isso considerava-se um sujeito do campo, embora vivesse na cidade já havia trinta anos. Vai daí que ele nutria aquela paixão por cavalos e que tais. Uma vez, tirou o menino da cama de madrugada, no inverno, para ver um burro que pastava no terreno baldio ao lado da casa. E lá ficaram eles, naquele frio desgraçado do inverno paulistano antes do efeito estufa, coisa em torno de zero grau, o menino contemplando não o burro, mas a besta que o arrancara da cama àquela hora, para observar um animal que se via toda hora nas carroças dos garrafeiros pelas ruas.

Resumindo: o panaca parou o carro, deu ré, entrou na transversal e foi até os cavalos, guardados por um camarada que os alugava para passeio. O mané — ou seja, o louco — pegou um dos cavalos — na cara do infeliz dava pra ver que ele se sentia o próprio John Wayne, — meteu o pé num estribo e, quando ia se erguer para montar na cela, o cavalo deu uns três passinhos adiante e o derrubou. Com o pé ainda preso no estribo, o idiota foi arrastado por uns poucos metros, uns dois ou três, o suficiente para render uns rasgões na roupa e algumas esfoladuras no couro.

E assim terminava a aventura equestre. O idiota se levantou do chão e mancou até o carro tentando fazer como se nada tivesse acontecido, o que só aumentava o ridículo da situação. Tudo que o menino queria era cavar um buraco e se enterrar. A vergonha só não doía mais porque o acidente teve a virtude de apagar os fumos cavalares do bocó, que depois daquilo só queria ir para casa. Ao menos nisso eles concordavam, enfim.