quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Equinos e muares

Domingo. Voltando do clube para pegar o almoço em casa, onde a louca ficara, cumprindo seus deveres de doméstica.

Normalmente, aquela volta para casa aos domingos, depois da manhã passada no clube, era um alívio.

O menino não gostava de conviver com o louco. A louca vivia a dizer que o louco era um santo. O louco vivia a desprezar a louca, a enchê-la de chifres e a usá-la como empregada doméstica.

Aos poucos, as idas de domingo ao clube foram se convertendo numa maneira de o louco e a louca se evitarem. Ele, o louco, saía com os filhos para, supostamente, todos se divertirem juntos. Ela, a louca, ficava no lar — bom, talvez seja exagero chamar aquele portal do inferno de lar; digamos então que a louca ficava em casa, desfrutando de algumas horas longe dos filhos, dos quais ao menos os dois mais velhos eram-lhe insuportáveis. A louca ficava sozinha em casa, fazendo sei lá o quê, cozinhando, é fato, pois o louco esperava chegar e encontrar a boia pronta. A louca ficava sozinha em casa, cozinhando e fazendo o que mais as loucas usam fazer quando estão sozinhas em casa.

E os filhos lá, no clube, com o louco. O clube era relacionado ao banco estatal em que o louco trabalhava. Lá no clube ele encontrava seus colegas e juntos eles ficavam repetindo para si mesmos: “Puta merda! Como nós somos demais! Nossa! Me sinto tão foda por ser funcionário do imenso banco estatal!”

O menino ia para a piscina e gostava de mergulhar e ficar submerso o maior tempo possível. Ele adorava mijar dentro da água e pensava ser o único a fazê-lo. A infância e suas ilusões.

O terror maior do menino era ter de tomar banho com o louco — era bem nojento vê-lo sob o chuveiro. Ele não se ensaboava, ele se acariciava. Pura lascívia, na frente dum garoto de seis anos. Eca! Ele não se olhava, ele se contemplava. Ele gemia. Ele fungava. Ele suspirava. Justiça se faça, convém dizer que o espetáculo não era encenado para o menino. Este era simplesmente ignorado, como de hábito. Estavam no clube, no banheiro do vestiário masculino, aquela coisa detestável de vários chuveiros, um ao lado do outro, sem nenhuma separação física, vários homens tomando banho e podendo se ver, vários homens nus sem poder evitar a visão recíproca da respectiva nudez. Uma merda, ao menos para quem, como o menino, sempre achou o corpo masculino repugnante. E o sujeito lá, se adorando, libido a mil, passando a língua nos lábios e gemendo, quase babando. Supergay. Assustador. O menino não via a hora de se pirulitar dali e tentar, mesmo que em vão, apagar a cena da memória.

Sair daquele clube tinha um sabor de liberdade. Normalmente, significava ir para casa, almoçar e se afastar do par de loucos. Trancar-se no quarto, a sós com seus medos. Naquela casa, isso era o máximo de paz que se podia almejar.

Certos domingos, depois do almoço, saíam todos para visitar parentes, excelente oportunidade de torturar os primos menores, o que não deixava de ser agradável, mas nem estava próximo de ser a atividade favorita do menino.

Ele gostava mesmo era de ficar só. Ele e seus infinitos medos, que por muito tempo acreditou serem de seu exclusivo conhecimento.

Quis o destino, entretanto, que naquele dia, já a caminho de casa, o boçal visse, numa transversal, os cavalos.

Na infância, o pacóvio passara fome, além de outros apertos, na roça, e por isso considerava-se um sujeito do campo, embora vivesse na cidade já havia trinta anos. Vai daí que ele nutria aquela paixão por cavalos e que tais. Uma vez, tirou o menino da cama de madrugada, no inverno, para ver um burro que pastava no terreno baldio ao lado da casa. E lá ficaram eles, naquele frio desgraçado do inverno paulistano antes do efeito estufa, coisa em torno de zero grau, o menino contemplando não o burro, mas a besta que o arrancara da cama àquela hora, para observar um animal que se via toda hora nas carroças dos garrafeiros pelas ruas.

Resumindo: o panaca parou o carro, deu ré, entrou na transversal e foi até os cavalos, guardados por um camarada que os alugava para passeio. O mané — ou seja, o louco — pegou um dos cavalos — na cara do infeliz dava pra ver que ele se sentia o próprio John Wayne, — meteu o pé num estribo e, quando ia se erguer para montar na cela, o cavalo deu uns três passinhos adiante e o derrubou. Com o pé ainda preso no estribo, o idiota foi arrastado por uns poucos metros, uns dois ou três, o suficiente para render uns rasgões na roupa e algumas esfoladuras no couro.

E assim terminava a aventura equestre. O idiota se levantou do chão e mancou até o carro tentando fazer como se nada tivesse acontecido, o que só aumentava o ridículo da situação. Tudo que o menino queria era cavar um buraco e se enterrar. A vergonha só não doía mais porque o acidente teve a virtude de apagar os fumos cavalares do bocó, que depois daquilo só queria ir para casa. Ao menos nisso eles concordavam, enfim.

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