sábado, 20 de outubro de 2012

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Pinguinho

hoje eu acordei chorando
chorei por uma razão
chorei a perda de um amigo
a perda sem volta
a ida
o que queremos nunca
a mais presente das ausências

terça-feira, 27 de março de 2012

o dia em que deus saiu do armário

                   Deus vivia na escuridão, nada sabia de nada além da escuridão. Havia cheiros, especialmente um, que depois ele viria a aprender ser o de mofo, desagradou-o desde o início.

                   Sua vida era assim, nada de mais nem de menos, sempre escura, o que não chegava a ser mau para quem só conhecia o escuro. Quer dizer, ele também conhecia a claridade, claridade tão forte que equivalia à escuridão, claridade que nada permitia ver além da brancura total, sem contorno.

                   Tudo que ele via, nos breves instantes em que saía da escuridão, era isto: a claridade, claridade insuportável, uma luminosidade impossível, na qual nada se distinguia, aquilo que qualquer um vê quando passa do escuro total para uma luz muito intensa. Ofuscamento.

                   Havia sons, sons que Deus ouvia não distantes, mas abafados, como se vindos do outro lado de uma parede, como de fato vinham, do outro lado de uma parede não muito espessa nem muito sólida. Não, a parede era fina, de madeira.

                   Mas havia vozes, vozes havia, às vezes uma só. Quando as vozes ficavam altas, mesmo quando era uma só, se a voz vinha alta, agressiva, Deus já sabia ser praticamente certo que o arrancariam da profunda escuridão e o colocariam na estonteante claridade para logo em seguida o devolverem às trevas originais.

                   “Anda, moleque, come tudo!”

                   “Não quero!”

                   “Come tudo, que eu estou mandando!”

                   O moleque se fecha num silêncio hermético.

                   “Está bem, foi você que pediu! Deus vai te castigar!”

                   Nota-se um abalo na postura do menino, seu olhar deixa transparecer uma dúvida, um tremor.

                   A mãe, notando o esmorecimento do filho, dirige-se a um armário, põe a mão no puxador de uma porta, bem conhecida do garoto, que cada vez menos consegue dissimular o medo.

                   “Eu falei que Deus ia castigar. Não falei?”

                   O menino se encolhe por dentro, tomado por terrores abissais.

                   A mãe abre a porta do armário e puxa Deus lá de dentro, segura-o pelas axilas e o sacode na frente do garoto, fazendo sons supostamente fantasmagóricos. O moleque se rende. Com lágrimas nos olhos, começa a comer sôfrego, quase engasgando, no afã de se livrar daquela presença apavorante. Deus volta para o armário e a vaca, ou melhor, a mãe canta vitória:

                   “Eu não falei que Deus castigava?”

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

NINGUÉM É NINGUÉM

alguém me explique por que uma chupada não pode ser algo romântico
por que só flores e abracinhos e beijinhos
que bosta
será que ninguém sente diferente de ninguém
creio mais que fato
cada um é um
não único não exclusivo
mas também não totalmente comum
alguém com características próprias e impróprias
particulares e corriqueiras
ninguém é um ser inteiramente peculiar
nem inteiramente sem face
a maioria é assim
esta bosta triste
sem caminho nem perdição
apenas coisas
dotadas de animação própria
e de pensamento alheio
mas que se creem absolutamente únicas
como se luas ou sóis
mas o negócio é que a vida
ao contrário do que se diz
quase sempre para quase todos é bem boba
um troço sem sal
que queremos continuar provando
e viver
na maioria dos casos
não passa disto
todo dia comer a mesma coisa e não ver o tempo passar

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

o peso (e o cheiro) da glória

O grande homem nunca dava passo em falso. Ele sempre via o melhor caminho. Por isso que entrou tantas vezes em esquemas de pirâmide. O imbecil queria ganhar dinheiro, desde que não tivesse que trabalhar, e achava que era o único no mundo a pensar assim.

Uma vez ele se meteu numa dessas pirâmides no estilo Amway. Entupiu a casa de caixas e caixas de um sabão líquido desconhecido que era uma maravilha, uma coisa tão boa, mas tão, mas tão, mas tão boa que se venderia por si própria, sem necessidade alguma de outra publicidade que não o boca a boca. Era perfeito. Era infalível. E é evidente que não funcionou.

Resultado: o camarada não vendeu nem uma gota de sabão milagroso e tudo seguiu conforme dantes. Quem era louco de contestar um sujeito tão genial, especialmente quando o sujeito genial é muito maior que você, detém o poder econômico da casa e é dotado de uma estupidez sem fronteiras? E então a casa ficou entulhada, caixas e caixas da maravilha saponácea ocupando cada mínimo cantinho aproveitável. Agora tínhamos sabão para lavar até nossos bisnetos. Reconfortante.

Mas o melhor ainda estava por vir. Depois de uns poucos meses, três, quatro, não mais que seis, o esplêndido sabão começou a apodrecer. Era um produto biodegradável pra chuchu, tão biodegradável, aliás, que se biodegradou ainda fechado na própria embalagem. Era abrir um frasco do bagulho para a casa toda ficar empesteada com aquele miasma. Um cheiro próprio, indefinível, poderia ser de merda, de carniça, de um monte de coisa, de qualquer coisa pestilenta ad nauseam.

E o grande homem, obviamente, insistia em que se continuasse usando o sabão podre. Devíamos usá-lo no banho, na lavagem da louça. Porque o sabão era ótimo, seu único porém era o cheirinho ligeiramente desagradável, comparável ao de um contêiner abarrotado de cadáveres em decomposição.

Quem sabe, num futuro muito distante, quando aquela infinidade de sabão acabasse, nós poderíamos passar a usar bichos mortos em nossa higiene pessoal, bastaria recolhê-los da rua.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

nada de mais

pra que tantas mentes
se apenas uma pensa
todas essas bocas
essas palavras
tão idênticas
todas aquelas velhas bigodudas da minha infância
nos ônibus nas cozinhas
passavam uma vida toda
sofrendo e se amesquinhando
dormindo cedo acordando cedo
portando pesos que as enchiam de varizes
mas não de generosidade
somos todos como elas
empanturrados de convicções
certos muito certos de que a velhice nos faz sábios
quanta besteira
basta olhar
quanto velho tolo por aí
sofrimento não faz ninguém melhor
a vida não engrandece
viver nunca é mais que viver

domingo, 22 de janeiro de 2012

LA CRÈME DE LA CRÈME

não há dor maior que o prazer de causar dor
que olhar nos olhos do sofrimento
e dizer contrito
filho meu
e torcer o torniquete
só uma voltinha mais
e mais outra
e mais uma
quem sabe ainda umazinha mais
só uma
até que não haja grito
até que não haja ricto
até que nenhuma expressão
nenhum modo de externar coisa alguma
nada em lugar nenhum
retrate as entranhas do sofredor
é como um orgasmo do avesso