terça-feira, 12 de janeiro de 2016

VÁ TRABALHAR VAGABUNDO!

Em homenagem e agradecimento ao amigo Fajardo


          Acho curioso o zelo que assoma em muitos de meus semelhantes quando se discutem políticas de inclusão social. Tantos se erguem e declaram-se favoráveis a elas, desde que ─ e aí é que vem a grande ênfase ─, não obstante, o incluído, em contrapartida, retribua com seu trabalho o benefício recebido ─ representado por verbas inseridas em rubricas tais como bolsa-família ou salário-educação, as quais têm por fim proporcionar ao indivíduo uma renda que o situe acima da linha divisória existente entre a pobreza e, mais abaixo, a miséria.
         Na mesma linha de raciocínio, critica-se a política de redistribuição agrária, sob o argumento de que a imensa maioria dos assentados, em vez de cultivar a terra, procura vendê-la quanto antes, atrás de lucro rápido e fácil.
         Fica-me a impressão, em suma, de que o discurso dos que se opõem às políticas de benefício social normalmente versa sobre um mesmo tema: os destinatários das benesses nada dão em troca do que recebem, o que constituiria falta gravíssima, causadora de incalculáveis danos econômicos e sociais, resultantes do desperdício de dinheiro público e da aprovação tácita do governo à conduta de gente que, sem nada fazer, é agraciada por programas de renda mínima financiados pela parcela da população supostamente pagadora de tributos.
         Sempre me pareceu curiosa a relação estabelecida, no Brasil, entre as classes que ingerem, ao menos, três refeições diárias e aquelas cujo consumo de calorias não raro fica aquém do mínimo aceitável estipulado pelos órgãos internacionais de saúde.
         Permitam-me aqui abrir um parêntese. Neste momento, trato da relação entre ricos e pobres neste país, considerando sua peculiaridade. Convém notar, todavia, que ainda mais curiosa que a dita relação é a própria distância a separar os mencionados segmentos sociais, de dimensão abissal. Mas peço licença para passar por cima de tópico tão relevante e desde já discutir somente um aspecto da aberrante convivência estabelecida entre ambos.
         A impressão que me vem é de que, pela visão dos nutridos, aos desnutridos cumpriria se dobrar em reverência aos senhores por não mais serem escravizados, por finalmente disporem de liberdade para esfaimar da forma que melhor lhes aprouver.
         Ou seja, pelo simples fato de não mais sujeitar-se à condição de propriedade alheia ─ não sendo, por conseguinte, obrigado a trabalhar em troca de remuneração alguma ─, o pobretão deveria se sentir em permanente dívida de gratidão com os membros das classes mais abastadas, cuja expletiva piedade permite-lhe padecer livremente sua fome sem que lhe sapequem uma tunda ─ exceto quando atropelado por um desses inarráveis casos isolados de que nossas laboriosas corporações policiais tão pródigas são ─ e concede-lhe o exercício de suas liberdades ambulatórias ─ também conhecidas como direito de ir e vir, embora eu não consiga vislumbrar aonde queira ir, ou de onde queira vir, uma pessoa com o estômago pregado nas costas, a não ser que tal deslocamento implique a obtenção de comida.
         Enfim, parece-me que, aos olhos dos que não passam fome, os esfomeados deveriam expressar nada além de seu reconhecimento pela bondade de quem abnegadamente teria renunciado ao direito divino de colocá-los a ferros e fazê-los cozer sob o sol em plantios e colheitas, até que a morte os separasse.
         A meu ver, somente partindo-se desse raciocínio chega-se à conclusão de que o mau uso dos recursos públicos pelos destinatários de programas de benefício social constituiria tamanha afronta aos valores de nossa sociedade.
         Sim, porque se o camarada, pela dádiva de não mais ser vítima da escravidão, teria o dever de beijar os pés dos abonados, por receber os caraminguás do bolsa-família ou do bolsa-escola ─ a bem dizer, nem sei se estou denominando corretamente os programas, mas isso em nada invalida minhas razões ─, ou mesmo por obter um pedaço de terra num assentamento que, muitas vezes, não é dotado de infraestrutura nenhuma, o sujeito deveria, em lágrimas, franquear todas as suas cavidades corporais ao livre tráfego do patronato.
         Acho isso curioso também à vista de que, quando os ricos cometem velhacarias com dinheiro público ─ as quais estão bem longe de ser poucas e, de regra, envolvem quantias infinitamente mais altas que as dos pobres ─, não se verificam rasgos tão inflamados em defesa da decência e da moralidade.
         Quando uma imensa empresa do ramo de telecomunicações acumula uma dívida bilionária com o fisco, não se vê sequer uma minúscula marola de indignação contra os privilégios desses ricos caloteiros.
         Quando o governo gasta bilhões para salvar bancos mal administrados da falência, ninguém deblatera atacando esses banqueiros safados que são premiados com importâncias exorbitantes para salvar seus negócios mal geridos.
         Ocorre, entretanto, que, tendo em mente tais elementos, torna-se mais fácil identificar o que é realmente danoso para o país.
         São os pobres sem moral.
         Claro, pois o rico que sonega ou que se apropria ilicitamente de dinheiro público deve estar procedendo conforme a vocação natural de seu estrato na sociedade.
         O pobre, por sua vez, repita-se, deveria se convencer de que, simplesmente por não estar sujeito à escravidão, com todos os seus consectários, ele ficaria moralmente obrigado a atos diários de contrição por viver livre em sua pobreza.
         Querer, ademais, programas de benefício social que promovam o despertar de uma consciência cidadã nas camadas menos favorecidas e sua inserção na cadeia de consumo constituiria o mais gravoso dos ultrajes. Não fosse por outros motivos, bastaria a simples evidência de que a plebe, invariavelmente, conduz-se de maneira a frustrar os fins dos programas sociais, convicta de que a si são conferidas as mesmas liberdades de que desfrutam os abonados no trato com a coisa pública.
         Enfim, creio que, na visão dos que se opõem a diretrizes inclusivas, os defensores de tais políticas deveriam compreender que ao despossuído nada pode ser dado “de mão beijada”, porque assim ele, embora nunca contemplado em muitos de seus direitos sociais elementares ─ aqueles elencados na Constituição Federal, que lhe assistem tão só pelo fato de ser brasileiro ─, fatalmente se converteria em parasita explorador do erário, comportamento de todo reprovável, venha de quem vier, mas aparentemente muito menos lesivo ─ quiçá mesmo benéfico, segundo as circunstâncias ─ quando adotado por membros das classes ricas, malgrado os desvios destes normalmente alcancem somas astronômicas, ao contrário do que ocorre nos segmentos sociais mais humildes.
         Diante de tais evidências, só me resta pedir perdão por discordar dos endinheirados e seus satélites, pois tenho certeza de que nessa história deve residir alguma moral que não consigo captar. Afinal de contas, seria implausível supor a existência de tantas pessoas capazes de crer em algo que, no frigir dos ovos, não passaria de singela imbecilidade.
        
PS: eu sei, atribuí ao verbo esfaimar um significado (sofrer fome, passar fome) que os dicionários não lhe atribuem; dane-se, gostei da sonoridade.

domingo, 8 de março de 2015

CEGA CEGUEIRA

vida
ignorância sem saída
a casa de portas escancaradas
gritos
lágrimas
olha lá
mudou porra nenhuma

morre-se aos montes no mundo
solidão sem solução
no meio do imenso amontoado de gente
transbordando pelas calhas da casa
sem nem uma cadeira mísera
pra sentar e esperar esperar esperar
até nunca vir
e tome espera

e adivinha o que mais
isso mesmo
cansei de repetir o nome do fato
mas o fato não se cansa de se repetir

pés juntos no revertere ad locum tuum
em paz comendo grama pela raiz
fato certo a termo indeterminado
cada dia dia menos
até que se fecha a tampa

domingo, 1 de março de 2015

MUNDO PERDIDO
estamos perdendo o mundo
perdidos no meio do mapa
gps na mão
dinheiro no bolso
sem saber onde
sinto tanta saudade do que não vivi
antes de mais nada
saudade de não ser
profundamente
esquecimento lembrança
o que fosse
não era vida nem morte
simplesmente era
ou não era
e eu desentristecido
simplesmente não sendo

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

QUESTÃO DE CLASSE

         Um dia, a mulher foi chegando com aquela carta de “tu nem imaginas”.
         Eu tinha quantos anos? Poucos. Comparados aos atuais, pouquíssimos.
         Eu era um poço de ignorância. E tinha consciência disso.
         Abençoados os ignorantes que se pensam profundezas de erudição. Mentes mínimas, infinitesimais mesmo. E eles, de dentro daquele cubículo repleto de vácuo, presumem-se senhores de todo o saber universal.
         A verdadeira felicidade reside na falta de consciência.
         Sim, porque a ignorância, quando acompanhada da consciência da vítima sobre seu estado de inanição intelectual, converte-se numa fonte de angústia.
         Bem-vindo à minha mente.
         O sujeito sem consciência, entretanto, vive no melhor dos mundos, graças justamente à sua falta de saber, que vai ao ponto de ele nem saber que não sabe.
         Encerrado na estreiteza de sua suposta ilustração, o camarada supõe-se o senhor do mundo e sai por aí, qual desfilasse com um cetro na mão e uma coroa na cabeça. Ele aprecia admirado as dimensões enciclopédicas de sua quitinete mental e diz para si mesmo: “Caralho! Eu sou muito foda”.
         Não duvido que haja felicidades maiores, mais duradouras e, acima de tudo, mais autênticas do que essa.
         Mas, na tranquila, o fato é que, comparado ao meio ignorante – aquele que, apesar de sabedor da própria ignorância, não consegue, por mais que tente, se livrar dela, – o ignorante completo é um ser com pleno potencial para a felicidade.
         Moral da história? Viva os tapados! Muito embora eu sinta uma indizível pulsão de matá-los muito mais que lentamente.
         Mas, dizia eu, lá um dia a mulher se chegou a mim. Estava estampado naquela cara que havia algo a ser dito, algo de capital importância.
         Eu tinha – e ainda tenho – a dolorosa consciência da profunda ignorância em que eu vivia imerso.
         Provavelmente por conta disso, entretanto, eu, das profundezas da minha própria insipiência, não era capaz de aferir a ignorância alheia. Dessa forma, aceitava todas, ou quase todas, as informações que me eram passadas, sem filtrá-las segundo a qualidade da fonte.
         Como seja, ante o comportamento dela, preparei-me para receber uma revelação bombástica sobre a gênese do cosmo.
         Reconheço agora que coloquei minha expectativa um tanto além do razoável. Também, convenhamos, eu era inteiramente criança e minha principal fonte de conhecimento era aquela mulher. E ela se divertia em me manobrar.
         E vai daí que, depois da previsível encenação, ela despejou a verdade: “Nós somos classe média”.
         Pensei que seria acometido por uma crise de caganeira. Eu não sabia o que era aquilo, classe média, só sabia que não era bom.
         Eu esperava algo do tipo: “Olha, na verdade, nós somos bilionários, descendemos de uma família nobre. Só estamos aqui, nesta vidinha, porque aceitamos participar de um experimento antropológico, submetendo-nos ao padrão classe média por um período limitado. Logo tudo vai acabar e voltaremos ao nosso palácio na Côte D’Azur”.
         Mas não, a verdade verdadeira estava bem ali, nua. Algo lá, bem dentro de mim, dizia-me.
         Eu era classe média.
         Senti-me atropelado por um transatlântico.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

NINGUÉM É INTEIRAMENTE NADA, MAS QUALQUER UM PODE SER INTEIRAMENTE ODIOSO

         Ninguém é inteiramente bom. Ninguém é inteiramente mau. Todos temos um pouco, ao menos, de cada um dentro de nós.
         Quando me deparo com alguém que aparenta ser inteiramente mau, sei haver algo de errado no que vejo. O mais provável é que eu esteja diante de uma farsa, uma farsa que, via de regra, envolve o sentimento de medo e a necessidade de se proteger. Quer dizer, a pessoa se faz de má para infundir medo, antes que o medo lhe seja infundido por outrem. Falo de experiência própria.
         Quanto à possibilidade de o indivíduo ser genuinamente mau, considero-a praticamente inexistente. É mais que raríssimo encontrar gente que mostre de cara como realmente é. Num caso assim, de qualquer modo, ainda haveria a sinceridade do sujeito para ser apreciada, embora eu, provavelmente, buscasse manter a maior distância possível do camarada.
         O pior, entretanto, é quando dou de cara com gente que aparenta ser o retrato da bondade. Esse é o tipo que me assusta. Agradáveis, solícitos, sorridentes, eles vão se expandindo em torno dos outros, envolvendo-os como barbante em carretel, derramando-se em mesuras, cortesia e bons modos enquanto preparam o bote.

         No momento em que se é atingido por um desses bondosos aparentes, nem dá para perceber a maldosa ardilosidade encoberta sob aquela cândida fachada. O mais das vezes, só muito depois descobrimo-nos vítimas da dissimulação, da falsidade, da perversa frouxidão de um fraco de má índole, contra quem nada se pode fazer, ao menos de modo lícito, pois o escroto, aos olhos do mundo, sempre se comportou com candidez, benevolência, tolerância, cordialidade. Nada a dizer, nada a fazer, a não ser que você aceite depois se ver tendo que se explicar perante um delegado, um promotor ou um juiz.

domingo, 25 de janeiro de 2015

NÃO SEI SE ESTOU AQUI

todo mundo quer se encontrar
sei não
mas lá vai o povo
em busca da coisa

como se investe tanto no que não se conhece
e se depois tudo que se tiver for nada
ou pior
algo de que se queira distância

nossa descobri meu verdadeiro eu
e sinceramente
achei-me um saco

afora os momentos em que eu gostaria mesmo de nem saber onde estou
naquela segunda de ressaca
poder ligar pro trabalho
seguinte pessoal
não vai dar pra ir
não sei onde estou
nem quando vou voltar

um pouco de desencontro

até que nem faz mal

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

EU NÃO SOU BOFF
         Não sei se sou Charlie. Mas acho que estou mais para ser que para não ser.
         A bem da verdade, até quatro dias atrás, eu não fazia ideia do que fosse Charlie. Agora, em meio à avalanche de comoção gerada pelo atentado, só quem vive numa concha talvez não saiba da existência do semanário francês.
         Acontece, todavia, que, do teor do semanário propriamente dito, pouco se sabe e o pouco que se sabe, via de regra, foi sabido por intermédio de terceiros. Eu mesmo tive oportunidade de ver apenas umas poucas charges, todas de um humor bastante mordaz, com referências nada edificantes a dogmas religiosos. Gostei. Vai daí que, agora há pouco, li um artigo de um religioso identificado com a esquerda, em que ele repudia com veemência o estilo de humor do Charlie Hebdo e censura, entre outras coisas, os desenhos que representavam Maomé, cuja simples figuração ofende a fé muçulmana.
         Segundo o raciocínio do articulista, retratar o fundador do islamismo equivaleria, como afronta, ao ato de chutar a estátua de um santo católico.
         Não sei onde esse senhor deixou sua capacidade de análise, mas eu lhe recomendaria, com todo respeito, que a pegasse de volta e a mantivesse sempre junto de si e que, acima de tudo, a usasse com mais frequência e acuidade. Um pontapé não é a mesma coisa que uma representação imagética e nunca vai ser.
         Não creio despropositado afirmar, inclusive, que, com exceção das práticas desportivas, um pontapé sempre constituirá uma ofensa. Um pontapé é ofensivo para um cristão, um budista, um ateu, um índio, um negro, um branco, um asiático, um rico, um pobre, um homem, uma mulher e mesmo para um muçulmano. Todos se ofendem ao serem chutados. Eis a palavra-chave: todos.
         O pontapé, como instrumento de ofensa, é universal, atinge todos que dele são vítimas. Já a representação gráfica de uma pessoa não o é.
         Como disse, eu, tal qual o resto do mundo, conheço pouquíssimo do Charlie Hebdo. Apesar disso, não creio absurdo imaginar que, ao retratar Maomé, um dos objetivos da publicação fosse afirmar o direito à liberdade de expressão. Porque uma coisa é praticar uma ação universalmente tida por reprovável. Outra, bem diferente, é abster-se de fazer algo que, em si mesmo, nada tem de ofensivo ou agressivo, apenas porque uma parcela restrita da sociedade não gosta de que aquilo seja feito.
         Não falo aqui pelo pessoal do Charlie, mas, do meu ponto de vista, as charges com Maomé valeram, quando nada, para mostrar aos fanáticos que eles não podem impor seus dogmas a toda a sociedade. Ninguém pode obrigar um muçulmano a desenhar a imagem de Maomé. De igual modo, é, ou deveria ser, impensável que um muçulmano se arvore no direito de proibir que pessoas de outros credos retratem o profeta do islã, pois elas não podem ser obrigadas a seguir o mandamento da religião que não escolheram.
         Esse religioso articulista é ligado ao catolicismo, o que talvez explique por que se sentiu atingido pelo conteúdo do Charlie Hebdo, que também ataca, de modo bem contundente, o cristianismo. Do que vi, porém, os ataques são dirigidos àqueles pontos em que os cristãos buscam estender a toda a sociedade as restrições a que apenas eles, cristãos, deveriam livremente se submeter, principalmente no que se refere à diversidade sexual e à maternidade responsável. Quer dizer, o tal articulista provavelmente presta solidariedade aos muçulmanos por também se sentir vítima do humor implacável do semanário, que parece não ter um pingo de piedade com as fantasias totalitárias de grupos político-religiosos.
         E o artigo vai ainda mais longe, acrescentando que os muçulmanos, vítimas da pobreza e da discriminação, sempre são apresentados de forma preconceituosa no Charlie. Considerando que o Charlie Hebdo se refere aos muçulmanos que são preconceituosos, parece-me pertinente que as representações sejam negativas. O mesmo raciocínio vale para os cristãos preconceituosos.
         Aliás, dizer que as charges atingiram todos os seguidores de uma determinada religião é bem mais do que ir um pouco longe na avaliação dos desdobramentos de um fato. É querer afirmar, independentemente de argumentos, que a conduta do semanário é errada porque é errada e ponto final. Se, por exemplo, existe corrupção na polícia e alguém se refere à corrupção policial e, por conta disso, todos os policiais se sentem atingidos, tem-se aí uma indicação de que há algo errado com a polícia, não com quem aponta os erros da polícia.
         O religioso articulista também pega carona na análise canhestra feita por uma plumitiva qualquer das tantas que há por aí, comparando o Charlie Hebdo à revista Veja. Quem me lembrou a Veja, no entanto, foi o senhor articulista, que, sob o manto de uma argumentação aparentemente lógica e abrangente, desconsiderou aspectos relevantes para a compreensão do caso, como as causas defendidas pelo semanário, centradas essencialmente, repito, na liberdade de expressão, e torceu os fatos para dissimuladamente defender a religião como instrumento propagador de preconceitos.
         No fim, de modo muito mal disfarçado, ele não chega apenas à velha conclusão de que “Eles fizeram por merecer”, ele vai além e imputa ao jornal de esquerda a culpa pelas reações de direita que têm ocorrido em retaliação aos islamitas. Se isso não é forçar a barra, então não sei mais o que essa expressão significa.
         O artigo assinado por esse religioso recebeu o título “Eu não sou Charlie”. Não é nem nunca será, mesmo que queira.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

TUDO ME DIZ ONDE PARAR

papéis têm pautas
vias têm faixas
corpos têm medidas

no descampo aberto largo
a árvore só
única no meio do pasto
vê tão circunstantes
as bordas da existência

sem sermos mais que nós
nada de nós emana
nada alcança alguém
sem sabor sem cor sem odor nem fedor
apenas uma alma em bastão
sem ódio sem humor sem nem tristezas interessantes
incapaz sequer de um pum

ergue-se o muro da indolência
com tijolos de apatia
e argamassa de torpor

perde-se a ceifa por se estar sempre em atraso
a vida prossegue por obra do ócio

domingo, 4 de janeiro de 2015

UM E DEPOIS OUTRO E OUTRO E OUTRO E OUTRO

mais um dia
mais um
em que talvez haja felicidade
lá fora
aqui dentro
vá saber

ou quiçá um dia para singelamente
infeliz ser
sei lá porra

se for assim
seja ao menos dessas infelicidadezinhas
daquelas como aquelas febrinhas bestas da infância
lânguida e praticamente indolor

febrinha de dia dia e meio se tanto
livra-nos da escola
e põe-nos numa tarde de mimos diante da tevê

e no dia seguinte volta-se à vida
até com uma certa saudade
da branda melancolia

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

para Tigresa (Jumantinha)

qué isso
deixa de miséria
eu só quero um pouco mais de álcool
nada que dê para matar dois elefantes e um cachalote
apenas o bastante que me apague a lembrança
de que às vezes
a única dádiva que se pode dar a quem se ama
é a morte
não me falem em deus
não me falem em nossa senhora
estou cansado de buscar coisas que tenham teor etílico inferior a quarenta
a garrafa é concreta
a garrafa é tátil
e cumpre o que promete
não preciso de mais milagre do que isso

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

sei lá que dia
por que que a vida
cair morrer e mais tudo
até que um dia
a dádiva de nunca
se antes de existir
me fosse infundida
a certa ciência
do tempo de uma queda
a exata expressão numérica
dos tombos
não me houvessem enfiado tanta mentira
enquanto eu criança
certo de que nunca chegaria a andar
despencava pelos cantos da casa
e descobria que até quedas requerem talento
outro dia
tudo que me pedem é que eu esteja e não seja
ou será o contrário
ou nada disso
por trás de todo conhecimento há um boquiaberto babando
e um bando de fingidores despejando saber que não lhes pertence
a grande glória nacional
é a infelicidade sem tristeza
a violência pacífica
a flatulência inodora e insonora
a elogiosa maledicência
não sei com que cara saio hoje
só sei que não será a minha

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

viva o verde
         Vamos agora falar um pouco de um sujeito sabido como poucos. Sempre gosto de lembrar dele, pois vê-lo viver, ou não viver, nunca deixou de ser uma lição de vida, do avesso.
         Umas das facetas mais intrigantes da criatura consistia em seu abstruso relacionamento com — de que outro modo dizer? — o catarro. Sim, basta dizer que o camarada tinha uma doutrina, revelada apenas parcialmente, construída sobre o assunto, doutrina essa observada religiosamente.
         Sua crença profunda, eis a parte revelada do mistério, era de que catarro provocava retardamento mental. Várias vezes senti-me tentado a dizer-lhe que, especificamente no caso dele, isso nunca poderia acarretar-lhe mais problema, mas sempre acabava considerando de melhor aviso calar-me e admirar — só, silente e indene — o acerto de minha percepção.
         O sujeito era um fungador compulsivo, vivia de aspirador ligado, puxando pras caixas o que houvesse naquelas fossas. E todos sabemos o que há lá, não se trata propriamente de um manancial de leite e mel.
         E então era isto, o neandertal puxava a verdolenga pasta todinha. Porém, filosoficamente convicto de não poder engoli-la, porque seria um crime privar o Universo daquele exuberante colosso intelectual, fazia o óbvio, singelamente acomodava o volume nos recônditos de sua cavidade bucal, e, em vez de cuspir o troço o quanto antes, como o comum dos mortais, mantinha-o lá, entra ano, sai ano.
         O pretexto para aquela repulsiva degustação de fluido corporal era a inexistência de ponto adequado para expelir a gosma. E vai daí que ele sempre ficava com a coisa lá, a dançar com a língua, a servir-lhe de chiclete, sendo capaz de inventar desculpa para não se desfazer do bagulho mesmo que passasse ao lado de uma escarradeira nova e vazia.

         E ele grunhia, e ele guinchava, e ele gritava e atirava bosta em todos que se aproximavam das barras da jaula, mas tudo era feito sem nunca, jamais se desfazer de seu querido catarro.
com caminho ou sem caminho

         Há tanto perdi o caminho. Por mais que tente, não me lembro de onde o deixei. Fui negligente, não tomei as precauções devidas. Um dia, quando olhei pro lado, sumira. Até que não era um caminho mau. Quando nada, era um caminho.
         Ora, não sei por que minto. Ou sei. Força do hábito. Mentir é algo de muita relevância para mim, herança, algo praticado com afinco há gerações por meus familiares, paternos e maternos.
         Grávida de mim, barriga bem proeminente, minha mãe, se indagada, dizia sofrer de verminose em estágio avançado, a ponto de verter bichas pelas ventas. Vergonha da prenhez? Pode ser, não seria novidade. Antigamente, qualquer condição um pouco diversa da mais comum era vista com desdém. Exibir uma gravidez em público tinha seu tanto de embaraçoso, pois a maioria das pessoas na rua não estava grávida. Tempo já houve até em que se escondia a embuchada dos olhos do povo.
         Entretanto, embora eu já esteja numa idade mais para velha que para nova, convém ressaltar que também não sou tão velho assim. Ao que sei, o tempo de se ocultar gravidez foi bem anterior ao da minha concepção. E, afinal, pensemos um pouco, o que seria mais vergonhoso, em qualquer tempo, para uma mulher casada: uma gravidez, ou uma colônia de lombrigas? Não fica muita margem para dúvida, decerto.
         Pode-se ver daí que, para mim, a mentira faz parte do patrimônio genético. Se minto de graça, quanto mais para dar sumiço a verdades incômodas.
         Eis o caso da afirmativa com que abri este texto. Perder o caminho não é nada de que alguém possa se orgulhar, forte indicativo de negligência, prolífica fonte de frustração. Mas muito pior que perder o caminho é ser por ele, caminho, rejeitado.
         Foi o que me aconteceu. Lá um dia, totalmente de surpresa, fui pego pelos fundilhos e arremessado longe. Estatelei-me, mas não fiquei a perguntar por quê, já estava habituado a ser tratado feito lixo (mamãe, mamãe, mamãe...).
         Sabendo ou não sabendo, o fato é que a iniciativa não foi minha. No que dependesse de mim, lá eu teria permanecido. Ainda que melhores houvesse, eu já me habituara àquele, o que já é metade do caminho para a aceitação. A outra metade é não ter alternativa. E já estava pacificado, aceito em mim, o caminho era aquele, ótimo, vamos em frente, ou fiquemos parados, ou retrocedamos, mas tudo ali, naquele mesmo lugar. Jamais me ocorreu que o próprio caminho também tivesse seus juízos e, pior ainda, suas iniciativas.
         Porra, foi tão de surpresa que, na verdade, nem sei como aconteceu. Não sei se foi um pontapé, um tranco, uma chulapada, só sei que foi.
         Tentei voltar, mas ele não deixou. Fugiu de mim, atacou-me, escondeu-se, inventou desculpas. Apenas uma vez consegui surpreendê-lo, apareci do nada, peguei-o distraído, pulei em cima e num único pinote fui mandado pra fora novamente.
         Caí, machuquei-me. Reagi como um fresco, chorei, escrevi umas merdas de poemas, fiquei com medo de tudo. No fim, entretanto, aceitei a infelicidade como minha condição natural e o desencontro como meu grande meio de relacionamento com o mundo.

         E creio que continuei a viver apenas por ódio, por este ódio que sinto do caminho que me rejeitou.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

divina fuleragem
como se ser se saber se sei lá o quê
ser meio torto meio erro meio turvo
é como se deve como se é
tanta demora
tanto tão longo tão passado tão extenso tempo
sendo-se o que não se quer
conflitando com a própria imaginação
morte ao que não está morto
tortas ao que não está torto
desfaça-se o que não está feito
deus estaria praticamente defunto
não tivesse ele nunca nascido
nascido fosse não passaria de uma bosta canina na calçada
dizendo-se divina
e o mundo acreditaria
e a entupiria de grana
e se diria salvo
e continuaria o mesmo

quarta-feira, 19 de junho de 2013

tão comum

olha lá
tudo pra lá de comum
saco
até serenidade se enxerga
placidezes remansosas entre
postes pedestres ônibus motos meios-fios
atravessadas em frente a tudo
como se nada faltasse
como se só se pudesse ser assim
como se nunca se saísse por aí
poros quase a sangrar
quase tudo derramado
olhos quase nas mãos
braços desmedidamente estendidos
por algo que nem em sonho
como se satisfação houvesse

por mais que menos de um segundo

quinta-feira, 13 de junho de 2013

imbecil primeiro
queria saber no que deus pensava
quando criou o tédio
decerto em porra nenhuma
não tenho dúvida a certos respeitos
um deles se refere à imbecilidade divina
duvido que ele exista
mas não tenho dúvida alguma
de que seja um baita dum imbecil
existente ou inexistente
que tédio e depressão
só sendo imbecil mesmo para conceber
não sei o que haveria em lugar de tédio e depressão
caso não os houvesse
fosse que merda fosse
que se ficasse por aí
dando com a cabeça na parede
e gargalhando
que as frustrações perdas negações fossem fontes de inconsequências
de que esse deus parece tão pleno
e não dessas imbecilidades sérias sisudas lacrimosas
qualquer outra coisa
no mundo só
pode ser melhor

que esse vazio com fita métrica chamado tédio e depressão

sábado, 27 de abril de 2013

E como me disse aquela feminista, enquanto limpava a baba de seu último acesso de raiva:

"Ninguém mi cômi, intão eu odeio hômi!"

sexta-feira, 1 de março de 2013



O MEMENTO MORI


hein?

                 O que é memento mori? Primeiro, uma expressão latina. Significa, literalmente, lembre-se da morte. Consta que era usada em Roma como uma exortação, para evitar a cegueira causada pelo poder, havendo registros de governantes e generais que mantinham junto a si, especialmente em seus triunfos, pessoas a lhes sussurrarem nos ouvidos que eles eram velhos, que não viveriam para sempre, que eram carecas, banguelas, barrigudos, feios, bobos, burros, uns buchos com as ancas cheias de culote, papas nos olhos e o diabo, tudo para evitar que a glória os embriagasse e os levasse a se esquecer de sua finitude e da fragilidade inata a tudo que vive.

                 Veio a Idade Média e, com ela, o que talvez tenha sido o auge do catolicismo como poder político. E aquele pessoal não estava pra brincadeira não, queria impor sua fé a todo custo. Claro que o memento mori, essencialmente uma exortação à modéstia ou até à subserviência, caiu como uma luva nos planos de dominação do mundo da santa madre. O conceito não só se difundiu como também ganhou corpo, tornando-se tema de obras de arte e assim ultrapassando o período medieval para chegar a seu ápice, até onde pude verificar, sob a exacerbada dramaticidade da arte barroca.

                 E foi aquele festival de esqueletos, caveiras e ossos avulsos em quadros, esculturas e obras arquitetônicas como túmulos, mausoléus, o cacete, tendo havido inclusive templos decorados ou mesmo construídos com ossos humanos, não por acaso denominados capelas de ossos, em lugares como Itália, Portugal e República Tcheca. Caso queira saber mais a respeito dessas edificações: http://cogitz.wordpress.com/2009/09/01/ossuaries-walls-of-bones/ (texto em inglês, mas as fotos falam por si). E todo esse esbanjamento de ossos só pra lembrar o camarada de uma coisa que, por mais que façamos, é inesquecível. E ainda que pudéssemos esquecê-la, ela nunca se esquece de nós.

                 Passado o barroco, nem por isso o memento mori passou. Continuou como elemento importante da decoração mortuária e, fato mais notável, adaptou-se a novos tempos, fixando-se na raiz de uma nova ordem de ideias, por assim dizer. Teve forte influência na literatura gótica, com a qual se inaugurou a história de terror e em cuja esteira surgiu também o gênero policial, com a pioneira criação, pelo gótico tardio Edgar Allan Poe, de Os Assassinatos da Rua Morgue.

mutatis mutandis

                 Mais interessante ainda, nesse processo evolutivo, foi a mudança operada na finalidade do memento mori. Ele foi gradualmente se despindo de seu caráter de advertência, de seu conteúdo moral, para se converter, cada vez mais, numa espécie de fetiche inspirador de atitudes, de modos de ser e de pensar, haja vista, em última análise, góticos e emos do presente.

                Durante suas sucessivas transformações sociais, o memento mori viveu uma fase muito curiosa, que eu considero, junto com a das mencionadas capelas de ossos, sua expressão mais sombria: o memento mori fotográfico vitoriano.

momentos kodak

A crescente popularização da fotografia, a partir da segunda metade do século XIX, aos poucos foi tornando acessível algo antes exclusivo daqueles poucos abonados com caixa suficiente para bancar um pintor de razoável talento: o retrato.

Ocorre, entretanto, que, naquela época, ao que parece, o povo gostava de morrer muito mais que hoje em dia. De toda forma, fosse por que fosse, morria-se bem mais cedo. As taxas de mortalidade infantil, então, eram pra Herodes nenhum botar defeito.

E era aí que surgia um problema grave e, por conta do que se explicou no parágrafo anterior, não muito raro. Ora, o que fazer quando o camarada resolvia esticar as canelas antes da chegada do lambe-lambe? Bastava fingir que o defunto estava vivo. Simples, não?

E assim, o memento mori, que desde o nascedouro trazia uma vocação manifesta para a estranheza, assumiu uma das funções mais esquisitas de sua história, deixando de ser, a rigor, uma lembrança da morte para se converter, mais propriamente, numa lembrança dos mortos.

E tome foto de defunto. Num lugar e época dos mais bizarros, a Inglaterra vitoriana (confira: http://listverse.com/2009/08/29/top-10-creepy-aspects-of-victorian-life/), o que haveria de tão macabro em guardar imagens de cadáveres?

Drácula Jr.?
Nesta altura, porém, cumpre traçar uma distinção. Podem-se identificar, conforme o que chamaremos aqui de intenção do retrato, dois tipos básicos de memento mori : o que simplesmente mostrava o morto como tal, ainda hoje praticado em meios mais tradicionalistas, como certas áreas rurais do Brasil; e o que era feito a fim de dar ao finado uma aparência de vivo. Do primeiro tipo, coloquei aqui, como exemplo, as fotos do Draculinha e do Raio de Sol (continue lendo que você entenderá). Do segundo, temos a tia Ermelinda e o Abre o Olho Moleque.

Abre o olho, moleque!

              A meu ver, era no segundo tipo que morava o perigo. Não que eu considere sadio guardar fotos de recordação de um cadáver, seja como for, mas também de modo algum estou aqui para ser a palmatória do mundo. Afinal, quem não tem suas esquisitices? E ainda mais, quem não tem seus esqueletos no armário? Acredito que qualquer um, a começar por mim, se submetido a um pente fino de sanidade mental, acabará seus dias vestindo uma camisa de força num quartinho acolchoado.

Enfim, tirante o sabor da pilhéria, não estou aqui para condenar o jeito como as pessoas querem manter suas recordações. Posso até julgá-las, é inevitável, mas não pretendo, absolutamente, condenar ninguém ao cadafalso por ser diferente de mim. Caso contrário, eu mesmo já deveria estar, há muito, comendo grama pela raiz no revertere ad locum tuum, além de, quem sabe, ter minha formosa figura ilustrando algum memento mori.

Muito bem, feitas as ressalvas, passemos à esculhambação.

A tia Ermelinda é a do meio. As outras duas estavam
vivas no instante do clique, suponho.
Cá entre nós, será que já não bastaria tirar a foto do cadáver no leito ou no caixão, mãozinhas postas, olhos fechados, etc.? Gostaria de saber quem foi o primeiro luminar que veio com a resplandecente ideia de mandar o morto se fingir de vivo. Merecia um prêmio. Pintar olhos abertos e bochechinhas coradas? Me recuso a acreditar que não houve ninguém capaz de chegar no cidadão e comentar: “Seguinte, leva a mal não, mas tô achando que esse troço vai ficar meio mórbido, na boa, de um baita mau gosto”.

PQP, mórbido é apelido! A gente olha pro trem e fica sem saber se ri ou se chora. Patético? Cômico? Maluco? Acho que tudo isso e mais algumas outras coisinhas.

E se ainda acrescentarmos ao caldo as tais das (in)felizes coincidências? Dá uma olhada na foto aí embaixo. Percebeu o que há de errado nela? Pois é, o sujeito me vai fazer propaganda de um estúdio chamado Raio de Sol (Sunbeam) na foto de um cadaverzinho? É soda.

Estúdio Raio de Sol? Será que não
dava pra ser um pouco mais
irônico?
Se o paciente leitor desejar ver as fotos aqui exibidas e ainda várias outras: http://cogitz.wordpress.com/2009/08/28/memento-mori-victorian-death-photos/.

pensando bem...

                Comecei a escrever este texto convencido de que o memento mori fotográfico era uso morto e enterrado. Todavia, agora me dou conta de que tudo na vida é uma questão de ponto de vista. Como quem diz um lugar-comum diz dois, aqui vai outro: se você quer conhecer uma pessoa, dê-lhe poder.

O fato de uma frase ser lugar-comum não significa que ela não seja verdadeira. Realmente, é no poder que as pessoas se mostram. E, do que pude observar até hoje, quanto mais alto se vai, menos íntegro se chega.


Não quero com isso dizer que o poder corrompe. Ou quero? O que acabo de notar é que, a continuar do jeito que vai, este artigo terminará com a cara de um desfile de lugares-comuns. Mas, retomando meu raciocínio, o que quero dizer não é que a pessoa, para obter poder, deva sempre praticar atos de corrupção no estrito sentido jurídico do termo.


Não, eu não considero que todo poderoso seja obrigatoriamente um vendido. O que considero sim é que, conquanto a lisura na acumulação e na disposição da riqueza seja uma componente importantíssima da integridade moral de qualquer um, os requisitos para a preservação dessa integridade não se esgotam aí.


Muitas vezes, arrisco mesmo dizer que quase sempre, o ser humano, em troca de migalhas, abre mão de princípios, crenças, amizades e assim, sem nem sujar as mãos em atos criminosos, corrompe-se em seu íntimo, trai a si próprio. E ainda há também um caso muito típico: o do sujeito que, enquanto subalterno, é um docinho de pessoa, mas, assim que elevado ao mando, revela-se o mais cruel dos tiranos.

A meu ver, gente dessa espécie também está morta, só falta o organismo parar de funcionar.

sugestão

                Por que não se resgata o memento mori para animar campanha eleitoral? Mau gosto combina com mau gosto.

Imaginem o corpo do saudoso Eneas manipulado por um ventríloquo, repetindo o famoso bordão ao lado de um candidato que se intitule herdeiro ideológico do extinto. Ou então o cadáver do bom e velho ACM sendo sacudido ao ritmo do axé sob o seguinte lema: “Estou com fulano até na morte”. Ou então: “Este candidato levanta até defunto”.

Na próxima eleição, ponha seu
memento mori pra sacudir.

No estrangeiro também se poderia lançar mão do artifício. Imaginem o corpo do Lênin, cuja manutenção, dizem, custa cem mil dólares anuais, sendo posto pra trabalhar.

As possibilidades são infinitas, basta usar a imaginação.