sexta-feira, 1 de março de 2013



O MEMENTO MORI


hein?

                 O que é memento mori? Primeiro, uma expressão latina. Significa, literalmente, lembre-se da morte. Consta que era usada em Roma como uma exortação, para evitar a cegueira causada pelo poder, havendo registros de governantes e generais que mantinham junto a si, especialmente em seus triunfos, pessoas a lhes sussurrarem nos ouvidos que eles eram velhos, que não viveriam para sempre, que eram carecas, banguelas, barrigudos, feios, bobos, burros, uns buchos com as ancas cheias de culote, papas nos olhos e o diabo, tudo para evitar que a glória os embriagasse e os levasse a se esquecer de sua finitude e da fragilidade inata a tudo que vive.

                 Veio a Idade Média e, com ela, o que talvez tenha sido o auge do catolicismo como poder político. E aquele pessoal não estava pra brincadeira não, queria impor sua fé a todo custo. Claro que o memento mori, essencialmente uma exortação à modéstia ou até à subserviência, caiu como uma luva nos planos de dominação do mundo da santa madre. O conceito não só se difundiu como também ganhou corpo, tornando-se tema de obras de arte e assim ultrapassando o período medieval para chegar a seu ápice, até onde pude verificar, sob a exacerbada dramaticidade da arte barroca.

                 E foi aquele festival de esqueletos, caveiras e ossos avulsos em quadros, esculturas e obras arquitetônicas como túmulos, mausoléus, o cacete, tendo havido inclusive templos decorados ou mesmo construídos com ossos humanos, não por acaso denominados capelas de ossos, em lugares como Itália, Portugal e República Tcheca. Caso queira saber mais a respeito dessas edificações: http://cogitz.wordpress.com/2009/09/01/ossuaries-walls-of-bones/ (texto em inglês, mas as fotos falam por si). E todo esse esbanjamento de ossos só pra lembrar o camarada de uma coisa que, por mais que façamos, é inesquecível. E ainda que pudéssemos esquecê-la, ela nunca se esquece de nós.

                 Passado o barroco, nem por isso o memento mori passou. Continuou como elemento importante da decoração mortuária e, fato mais notável, adaptou-se a novos tempos, fixando-se na raiz de uma nova ordem de ideias, por assim dizer. Teve forte influência na literatura gótica, com a qual se inaugurou a história de terror e em cuja esteira surgiu também o gênero policial, com a pioneira criação, pelo gótico tardio Edgar Allan Poe, de Os Assassinatos da Rua Morgue.

mutatis mutandis

                 Mais interessante ainda, nesse processo evolutivo, foi a mudança operada na finalidade do memento mori. Ele foi gradualmente se despindo de seu caráter de advertência, de seu conteúdo moral, para se converter, cada vez mais, numa espécie de fetiche inspirador de atitudes, de modos de ser e de pensar, haja vista, em última análise, góticos e emos do presente.

                Durante suas sucessivas transformações sociais, o memento mori viveu uma fase muito curiosa, que eu considero, junto com a das mencionadas capelas de ossos, sua expressão mais sombria: o memento mori fotográfico vitoriano.

momentos kodak

A crescente popularização da fotografia, a partir da segunda metade do século XIX, aos poucos foi tornando acessível algo antes exclusivo daqueles poucos abonados com caixa suficiente para bancar um pintor de razoável talento: o retrato.

Ocorre, entretanto, que, naquela época, ao que parece, o povo gostava de morrer muito mais que hoje em dia. De toda forma, fosse por que fosse, morria-se bem mais cedo. As taxas de mortalidade infantil, então, eram pra Herodes nenhum botar defeito.

E era aí que surgia um problema grave e, por conta do que se explicou no parágrafo anterior, não muito raro. Ora, o que fazer quando o camarada resolvia esticar as canelas antes da chegada do lambe-lambe? Bastava fingir que o defunto estava vivo. Simples, não?

E assim, o memento mori, que desde o nascedouro trazia uma vocação manifesta para a estranheza, assumiu uma das funções mais esquisitas de sua história, deixando de ser, a rigor, uma lembrança da morte para se converter, mais propriamente, numa lembrança dos mortos.

E tome foto de defunto. Num lugar e época dos mais bizarros, a Inglaterra vitoriana (confira: http://listverse.com/2009/08/29/top-10-creepy-aspects-of-victorian-life/), o que haveria de tão macabro em guardar imagens de cadáveres?

Drácula Jr.?
Nesta altura, porém, cumpre traçar uma distinção. Podem-se identificar, conforme o que chamaremos aqui de intenção do retrato, dois tipos básicos de memento mori : o que simplesmente mostrava o morto como tal, ainda hoje praticado em meios mais tradicionalistas, como certas áreas rurais do Brasil; e o que era feito a fim de dar ao finado uma aparência de vivo. Do primeiro tipo, coloquei aqui, como exemplo, as fotos do Draculinha e do Raio de Sol (continue lendo que você entenderá). Do segundo, temos a tia Ermelinda e o Abre o Olho Moleque.

Abre o olho, moleque!

              A meu ver, era no segundo tipo que morava o perigo. Não que eu considere sadio guardar fotos de recordação de um cadáver, seja como for, mas também de modo algum estou aqui para ser a palmatória do mundo. Afinal, quem não tem suas esquisitices? E ainda mais, quem não tem seus esqueletos no armário? Acredito que qualquer um, a começar por mim, se submetido a um pente fino de sanidade mental, acabará seus dias vestindo uma camisa de força num quartinho acolchoado.

Enfim, tirante o sabor da pilhéria, não estou aqui para condenar o jeito como as pessoas querem manter suas recordações. Posso até julgá-las, é inevitável, mas não pretendo, absolutamente, condenar ninguém ao cadafalso por ser diferente de mim. Caso contrário, eu mesmo já deveria estar, há muito, comendo grama pela raiz no revertere ad locum tuum, além de, quem sabe, ter minha formosa figura ilustrando algum memento mori.

Muito bem, feitas as ressalvas, passemos à esculhambação.

A tia Ermelinda é a do meio. As outras duas estavam
vivas no instante do clique, suponho.
Cá entre nós, será que já não bastaria tirar a foto do cadáver no leito ou no caixão, mãozinhas postas, olhos fechados, etc.? Gostaria de saber quem foi o primeiro luminar que veio com a resplandecente ideia de mandar o morto se fingir de vivo. Merecia um prêmio. Pintar olhos abertos e bochechinhas coradas? Me recuso a acreditar que não houve ninguém capaz de chegar no cidadão e comentar: “Seguinte, leva a mal não, mas tô achando que esse troço vai ficar meio mórbido, na boa, de um baita mau gosto”.

PQP, mórbido é apelido! A gente olha pro trem e fica sem saber se ri ou se chora. Patético? Cômico? Maluco? Acho que tudo isso e mais algumas outras coisinhas.

E se ainda acrescentarmos ao caldo as tais das (in)felizes coincidências? Dá uma olhada na foto aí embaixo. Percebeu o que há de errado nela? Pois é, o sujeito me vai fazer propaganda de um estúdio chamado Raio de Sol (Sunbeam) na foto de um cadaverzinho? É soda.

Estúdio Raio de Sol? Será que não
dava pra ser um pouco mais
irônico?
Se o paciente leitor desejar ver as fotos aqui exibidas e ainda várias outras: http://cogitz.wordpress.com/2009/08/28/memento-mori-victorian-death-photos/.

pensando bem...

                Comecei a escrever este texto convencido de que o memento mori fotográfico era uso morto e enterrado. Todavia, agora me dou conta de que tudo na vida é uma questão de ponto de vista. Como quem diz um lugar-comum diz dois, aqui vai outro: se você quer conhecer uma pessoa, dê-lhe poder.

O fato de uma frase ser lugar-comum não significa que ela não seja verdadeira. Realmente, é no poder que as pessoas se mostram. E, do que pude observar até hoje, quanto mais alto se vai, menos íntegro se chega.


Não quero com isso dizer que o poder corrompe. Ou quero? O que acabo de notar é que, a continuar do jeito que vai, este artigo terminará com a cara de um desfile de lugares-comuns. Mas, retomando meu raciocínio, o que quero dizer não é que a pessoa, para obter poder, deva sempre praticar atos de corrupção no estrito sentido jurídico do termo.


Não, eu não considero que todo poderoso seja obrigatoriamente um vendido. O que considero sim é que, conquanto a lisura na acumulação e na disposição da riqueza seja uma componente importantíssima da integridade moral de qualquer um, os requisitos para a preservação dessa integridade não se esgotam aí.


Muitas vezes, arrisco mesmo dizer que quase sempre, o ser humano, em troca de migalhas, abre mão de princípios, crenças, amizades e assim, sem nem sujar as mãos em atos criminosos, corrompe-se em seu íntimo, trai a si próprio. E ainda há também um caso muito típico: o do sujeito que, enquanto subalterno, é um docinho de pessoa, mas, assim que elevado ao mando, revela-se o mais cruel dos tiranos.

A meu ver, gente dessa espécie também está morta, só falta o organismo parar de funcionar.

sugestão

                Por que não se resgata o memento mori para animar campanha eleitoral? Mau gosto combina com mau gosto.

Imaginem o corpo do saudoso Eneas manipulado por um ventríloquo, repetindo o famoso bordão ao lado de um candidato que se intitule herdeiro ideológico do extinto. Ou então o cadáver do bom e velho ACM sendo sacudido ao ritmo do axé sob o seguinte lema: “Estou com fulano até na morte”. Ou então: “Este candidato levanta até defunto”.

Na próxima eleição, ponha seu
memento mori pra sacudir.

No estrangeiro também se poderia lançar mão do artifício. Imaginem o corpo do Lênin, cuja manutenção, dizem, custa cem mil dólares anuais, sendo posto pra trabalhar.

As possibilidades são infinitas, basta usar a imaginação.














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