Em homenagem e agradecimento ao amigo Fajardo
Acho curioso o zelo que assoma em
muitos de meus semelhantes quando se discutem políticas de inclusão social.
Tantos se erguem e declaram-se favoráveis a elas, desde que ─ e aí é que vem a
grande ênfase ─, não obstante, o incluído, em contrapartida, retribua com seu
trabalho o benefício recebido ─ representado por verbas inseridas em rubricas
tais como bolsa-família ou salário-educação, as quais têm por fim proporcionar
ao indivíduo uma renda que o situe acima da linha divisória existente entre a pobreza
e, mais abaixo, a miséria.
Na
mesma linha de raciocínio, critica-se a política de redistribuição agrária, sob
o argumento de que a imensa maioria dos assentados, em vez de cultivar a terra,
procura vendê-la quanto antes, atrás de lucro rápido e fácil.
Fica-me
a impressão, em suma, de que o discurso dos que se opõem às políticas de
benefício social normalmente versa sobre um mesmo tema: os destinatários das benesses
nada dão em troca do que recebem, o que constituiria falta gravíssima,
causadora de incalculáveis danos econômicos e sociais, resultantes do
desperdício de dinheiro público e da aprovação tácita do governo à conduta de
gente que, sem nada fazer, é agraciada por programas de renda mínima
financiados pela parcela da população supostamente pagadora de tributos.
Sempre
me pareceu curiosa a relação estabelecida, no Brasil, entre as classes que
ingerem, ao menos, três refeições diárias e aquelas cujo consumo de calorias
não raro fica aquém do mínimo aceitável estipulado pelos órgãos internacionais
de saúde.
Permitam-me
aqui abrir um parêntese. Neste momento, trato da relação entre ricos e pobres
neste país, considerando sua peculiaridade. Convém notar, todavia, que ainda
mais curiosa que a dita relação é a própria distância a separar os mencionados
segmentos sociais, de dimensão abissal. Mas peço licença para passar por cima
de tópico tão relevante e desde já discutir somente um aspecto da aberrante
convivência estabelecida entre ambos.
A
impressão que me vem é de que, pela visão dos nutridos, aos desnutridos cumpriria
se dobrar em reverência aos senhores por não mais serem escravizados, por
finalmente disporem de liberdade para esfaimar da forma que melhor lhes
aprouver.
Ou
seja, pelo simples fato de não mais sujeitar-se à condição de propriedade
alheia ─ não sendo, por conseguinte, obrigado a trabalhar em troca de
remuneração alguma ─, o pobretão deveria se sentir em permanente dívida de
gratidão com os membros das classes mais abastadas, cuja expletiva piedade permite-lhe
padecer livremente sua fome sem que lhe sapequem uma tunda ─ exceto quando
atropelado por um desses inarráveis casos isolados de que nossas laboriosas
corporações policiais tão pródigas são ─ e concede-lhe o exercício de suas
liberdades ambulatórias ─ também conhecidas como direito de ir e vir, embora eu
não consiga vislumbrar aonde queira ir, ou de onde queira vir, uma pessoa com o
estômago pregado nas costas, a não ser que tal deslocamento implique a obtenção
de comida.
Enfim,
parece-me que, aos olhos dos que não passam fome, os esfomeados deveriam expressar
nada além de seu reconhecimento pela bondade de quem abnegadamente teria
renunciado ao direito divino de colocá-los a ferros e fazê-los cozer sob o sol
em plantios e colheitas, até que a morte os separasse.
A
meu ver, somente partindo-se desse raciocínio chega-se à conclusão de que o mau
uso dos recursos públicos pelos destinatários de programas de benefício social
constituiria tamanha afronta aos valores de nossa sociedade.
Sim,
porque se o camarada, pela dádiva de não mais ser vítima da escravidão, teria o
dever de beijar os pés dos abonados, por receber os caraminguás do
bolsa-família ou do bolsa-escola ─ a bem dizer, nem sei se estou denominando
corretamente os programas, mas isso em nada invalida minhas razões ─, ou mesmo
por obter um pedaço de terra num assentamento que, muitas vezes, não é dotado
de infraestrutura nenhuma, o sujeito deveria, em lágrimas, franquear todas as
suas cavidades corporais ao livre tráfego do patronato.
Acho
isso curioso também à vista de que, quando os ricos cometem velhacarias com
dinheiro público ─ as quais estão bem longe de ser poucas e, de regra, envolvem
quantias infinitamente mais altas que as dos pobres ─, não se verificam rasgos
tão inflamados em defesa da decência e da moralidade.
Quando
uma imensa empresa do ramo de telecomunicações acumula uma dívida bilionária
com o fisco, não se vê sequer uma minúscula marola de indignação contra os privilégios
desses ricos caloteiros.
Quando
o governo gasta bilhões para salvar bancos mal administrados da falência,
ninguém deblatera atacando esses banqueiros safados que são premiados com
importâncias exorbitantes para salvar seus negócios mal geridos.
Ocorre,
entretanto, que, tendo em mente tais elementos, torna-se mais fácil identificar
o que é realmente danoso para o país.
São
os pobres sem moral.
Claro,
pois o rico que sonega ou que se apropria ilicitamente de dinheiro público deve
estar procedendo conforme a vocação natural de seu estrato na sociedade.
O
pobre, por sua vez, repita-se, deveria se convencer de que, simplesmente por
não estar sujeito à escravidão, com todos os seus consectários, ele ficaria
moralmente obrigado a atos diários de contrição por viver livre em sua pobreza.
Querer,
ademais, programas de benefício social que promovam o despertar de uma
consciência cidadã nas camadas menos favorecidas e sua inserção na cadeia de
consumo constituiria o mais gravoso dos ultrajes. Não fosse por outros motivos,
bastaria a simples evidência de que a plebe, invariavelmente, conduz-se de
maneira a frustrar os fins dos programas sociais, convicta de que a si são conferidas
as mesmas liberdades de que desfrutam os abonados no trato com a coisa pública.
Enfim,
creio que, na visão dos que se opõem a diretrizes inclusivas, os defensores de
tais políticas deveriam compreender que ao despossuído nada pode ser dado “de
mão beijada”, porque assim ele, embora nunca contemplado em muitos de seus
direitos sociais elementares ─ aqueles elencados na Constituição Federal, que
lhe assistem tão só pelo fato de ser brasileiro ─, fatalmente se converteria em
parasita explorador do erário, comportamento de todo reprovável, venha de quem
vier, mas aparentemente muito menos lesivo ─ quiçá mesmo benéfico, segundo as
circunstâncias ─ quando adotado por membros das classes ricas, malgrado os
desvios destes normalmente alcancem somas astronômicas, ao contrário do que
ocorre nos segmentos sociais mais humildes.
Diante
de tais evidências, só me resta pedir perdão por discordar dos endinheirados e
seus satélites, pois tenho certeza de que nessa história deve residir alguma
moral que não consigo captar. Afinal de contas, seria implausível supor a
existência de tantas pessoas capazes de crer em algo que, no frigir dos ovos, não
passaria de singela imbecilidade.
PS: eu sei, atribuí ao verbo esfaimar um significado (sofrer fome, passar fome) que os dicionários não lhe atribuem;
dane-se, gostei da sonoridade.