EU NÃO SOU BOFF
Não sei se sou
Charlie. Mas acho que estou mais para ser que para não ser.
A bem da
verdade, até quatro dias atrás, eu não fazia ideia do que fosse Charlie. Agora,
em meio à avalanche de comoção gerada pelo atentado, só quem vive numa concha
talvez não saiba da existência do semanário francês.
Acontece,
todavia, que, do teor do semanário propriamente dito, pouco se sabe e o pouco
que se sabe, via de regra, foi sabido por intermédio de terceiros. Eu mesmo tive
oportunidade de ver apenas umas poucas charges, todas de um humor bastante
mordaz, com referências nada edificantes a dogmas religiosos. Gostei. Vai daí
que, agora há pouco, li um artigo de um religioso identificado com a esquerda,
em que ele repudia com veemência o estilo de humor do Charlie Hebdo e censura,
entre outras coisas, os desenhos que representavam Maomé, cuja simples
figuração ofende a fé muçulmana.
Segundo o
raciocínio do articulista, retratar o fundador do islamismo equivaleria, como
afronta, ao ato de chutar a estátua de um santo católico.
Não sei onde
esse senhor deixou sua capacidade de análise, mas eu lhe recomendaria, com todo
respeito, que a pegasse de volta e a mantivesse sempre junto de si e que, acima
de tudo, a usasse com mais frequência e acuidade. Um pontapé não é a mesma
coisa que uma representação imagética e nunca vai ser.
Não creio
despropositado afirmar, inclusive, que, com exceção das práticas desportivas,
um pontapé sempre constituirá uma ofensa. Um pontapé é ofensivo para um
cristão, um budista, um ateu, um índio, um negro, um branco, um asiático, um
rico, um pobre, um homem, uma mulher e mesmo para um muçulmano. Todos se
ofendem ao serem chutados. Eis a palavra-chave: todos.
O pontapé,
como instrumento de ofensa, é universal, atinge todos que dele são vítimas. Já
a representação gráfica de uma pessoa não o é.
Como disse,
eu, tal qual o resto do mundo, conheço pouquíssimo do Charlie Hebdo. Apesar
disso, não creio absurdo imaginar que, ao retratar Maomé, um dos objetivos da
publicação fosse afirmar o direito à liberdade de expressão. Porque uma coisa é
praticar uma ação universalmente tida por reprovável. Outra, bem diferente, é
abster-se de fazer algo que, em si mesmo, nada tem de ofensivo ou agressivo,
apenas porque uma parcela restrita da sociedade não gosta de que aquilo seja
feito.
Não falo aqui
pelo pessoal do Charlie, mas, do meu ponto de vista, as charges com Maomé
valeram, quando nada, para mostrar aos fanáticos que eles não podem impor seus
dogmas a toda a sociedade. Ninguém pode obrigar um muçulmano a desenhar a
imagem de Maomé. De igual modo, é, ou deveria ser, impensável que um muçulmano
se arvore no direito de proibir que pessoas de outros credos retratem o profeta do islã, pois elas não podem ser obrigadas a seguir o mandamento da religião
que não escolheram.
Esse religioso
articulista é ligado ao catolicismo, o que talvez explique por que se sentiu
atingido pelo conteúdo do Charlie Hebdo, que também ataca, de modo bem
contundente, o cristianismo. Do que vi, porém, os ataques são dirigidos àqueles
pontos em que os cristãos buscam estender a toda a sociedade as restrições a
que apenas eles, cristãos, deveriam livremente se submeter, principalmente no
que se refere à diversidade sexual e à maternidade responsável. Quer dizer, o
tal articulista provavelmente presta solidariedade aos muçulmanos por também se
sentir vítima do humor implacável do semanário, que parece não ter um pingo de
piedade com as fantasias totalitárias de grupos político-religiosos.
E o artigo vai
ainda mais longe, acrescentando que os muçulmanos, vítimas da pobreza e da
discriminação, sempre são apresentados de forma preconceituosa no Charlie.
Considerando que o Charlie Hebdo se refere aos muçulmanos que são
preconceituosos, parece-me pertinente que as representações sejam negativas. O mesmo
raciocínio vale para os cristãos preconceituosos.
Aliás, dizer
que as charges atingiram todos os seguidores de uma determinada religião é bem
mais do que ir um pouco longe na avaliação dos desdobramentos de um fato. É
querer afirmar, independentemente de argumentos, que a conduta do semanário é
errada porque é errada e ponto final. Se, por exemplo, existe corrupção na polícia e alguém se refere à
corrupção policial e, por conta disso, todos os policiais se sentem atingidos,
tem-se aí uma indicação de que há algo errado com a polícia, não com quem
aponta os erros da polícia.
O religioso
articulista também pega carona na análise canhestra feita por uma plumitiva
qualquer das tantas que há por aí, comparando o Charlie Hebdo à revista Veja.
Quem me lembrou a Veja, no entanto, foi o senhor articulista, que, sob o manto
de uma argumentação aparentemente lógica e abrangente, desconsiderou aspectos
relevantes para a compreensão do caso, como as causas defendidas pelo semanário,
centradas essencialmente, repito, na liberdade de expressão, e torceu os fatos
para dissimuladamente defender a religião como instrumento propagador de
preconceitos.
No fim, de
modo muito mal disfarçado, ele não chega apenas à velha conclusão de que “Eles
fizeram por merecer”, ele vai além e imputa ao jornal de esquerda a culpa pelas
reações de direita que têm ocorrido em retaliação aos islamitas. Se isso
não é forçar a barra, então não sei mais o que essa expressão significa.
O artigo
assinado por esse religioso recebeu o título “Eu não sou Charlie”. Não é nem
nunca será, mesmo que queira.
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