com caminho ou sem caminho
Há
tanto perdi o caminho. Por mais que tente, não me lembro de onde o deixei. Fui
negligente, não tomei as precauções devidas. Um dia, quando olhei pro lado,
sumira. Até que não era um caminho mau. Quando nada, era um caminho.
Ora,
não sei por que minto. Ou sei. Força do hábito. Mentir é algo de muita
relevância para mim, herança, algo praticado com afinco há gerações por meus
familiares, paternos e maternos.
Grávida
de mim, barriga bem proeminente, minha mãe, se indagada, dizia sofrer de
verminose em estágio avançado, a ponto de verter bichas pelas ventas. Vergonha
da prenhez? Pode ser, não seria novidade. Antigamente, qualquer condição um
pouco diversa da mais comum era vista com desdém. Exibir uma gravidez em
público tinha seu tanto de embaraçoso, pois a maioria das pessoas na rua não
estava grávida. Tempo já houve até em que se escondia a embuchada dos olhos do
povo.
Entretanto,
embora eu já esteja numa idade mais para velha que para nova, convém ressaltar que
também não sou tão velho assim. Ao que sei, o tempo de se ocultar gravidez foi
bem anterior ao da minha concepção. E, afinal, pensemos um pouco, o que seria
mais vergonhoso, em qualquer tempo, para uma mulher casada: uma gravidez, ou
uma colônia de lombrigas? Não fica muita margem para dúvida, decerto.
Pode-se
ver daí que, para mim, a mentira faz parte do patrimônio genético. Se minto de
graça, quanto mais para dar sumiço a verdades incômodas.
Eis
o caso da afirmativa com que abri este texto. Perder o caminho não é nada de
que alguém possa se orgulhar, forte indicativo de negligência, prolífica fonte
de frustração. Mas muito pior que perder o caminho é ser por ele, caminho,
rejeitado.
Foi
o que me aconteceu. Lá um dia, totalmente de surpresa, fui pego pelos fundilhos
e arremessado longe. Estatelei-me, mas não fiquei a perguntar por quê, já
estava habituado a ser tratado feito lixo (mamãe, mamãe, mamãe...).
Sabendo
ou não sabendo, o fato é que a iniciativa não foi minha. No que dependesse de
mim, lá eu teria permanecido. Ainda que melhores houvesse, eu já me habituara
àquele, o que já é metade do caminho para a aceitação. A outra metade é não ter
alternativa. E já estava pacificado, aceito em mim, o caminho era aquele,
ótimo, vamos em frente, ou fiquemos parados, ou retrocedamos, mas tudo ali,
naquele mesmo lugar. Jamais me ocorreu que o próprio caminho também tivesse
seus juízos e, pior ainda, suas iniciativas.
Porra,
foi tão de surpresa que, na verdade, nem sei como aconteceu. Não sei se foi um
pontapé, um tranco, uma chulapada, só sei que foi.
Tentei
voltar, mas ele não deixou. Fugiu de mim, atacou-me, escondeu-se, inventou
desculpas. Apenas uma vez consegui surpreendê-lo, apareci do nada, peguei-o
distraído, pulei em cima e num único pinote fui mandado pra fora novamente.
Caí,
machuquei-me. Reagi como um fresco, chorei, escrevi umas merdas de poemas,
fiquei com medo de tudo. No fim, entretanto, aceitei a infelicidade como minha
condição natural e o desencontro como meu grande meio de relacionamento com o
mundo.
E
creio que continuei a viver apenas por ódio, por este ódio que sinto do caminho
que me rejeitou.
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