segunda-feira, 12 de agosto de 2013

sei lá que dia
por que que a vida
cair morrer e mais tudo
até que um dia
a dádiva de nunca
se antes de existir
me fosse infundida
a certa ciência
do tempo de uma queda
a exata expressão numérica
dos tombos
não me houvessem enfiado tanta mentira
enquanto eu criança
certo de que nunca chegaria a andar
despencava pelos cantos da casa
e descobria que até quedas requerem talento
outro dia
tudo que me pedem é que eu esteja e não seja
ou será o contrário
ou nada disso
por trás de todo conhecimento há um boquiaberto babando
e um bando de fingidores despejando saber que não lhes pertence
a grande glória nacional
é a infelicidade sem tristeza
a violência pacífica
a flatulência inodora e insonora
a elogiosa maledicência
não sei com que cara saio hoje
só sei que não será a minha

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

viva o verde
         Vamos agora falar um pouco de um sujeito sabido como poucos. Sempre gosto de lembrar dele, pois vê-lo viver, ou não viver, nunca deixou de ser uma lição de vida, do avesso.
         Umas das facetas mais intrigantes da criatura consistia em seu abstruso relacionamento com — de que outro modo dizer? — o catarro. Sim, basta dizer que o camarada tinha uma doutrina, revelada apenas parcialmente, construída sobre o assunto, doutrina essa observada religiosamente.
         Sua crença profunda, eis a parte revelada do mistério, era de que catarro provocava retardamento mental. Várias vezes senti-me tentado a dizer-lhe que, especificamente no caso dele, isso nunca poderia acarretar-lhe mais problema, mas sempre acabava considerando de melhor aviso calar-me e admirar — só, silente e indene — o acerto de minha percepção.
         O sujeito era um fungador compulsivo, vivia de aspirador ligado, puxando pras caixas o que houvesse naquelas fossas. E todos sabemos o que há lá, não se trata propriamente de um manancial de leite e mel.
         E então era isto, o neandertal puxava a verdolenga pasta todinha. Porém, filosoficamente convicto de não poder engoli-la, porque seria um crime privar o Universo daquele exuberante colosso intelectual, fazia o óbvio, singelamente acomodava o volume nos recônditos de sua cavidade bucal, e, em vez de cuspir o troço o quanto antes, como o comum dos mortais, mantinha-o lá, entra ano, sai ano.
         O pretexto para aquela repulsiva degustação de fluido corporal era a inexistência de ponto adequado para expelir a gosma. E vai daí que ele sempre ficava com a coisa lá, a dançar com a língua, a servir-lhe de chiclete, sendo capaz de inventar desculpa para não se desfazer do bagulho mesmo que passasse ao lado de uma escarradeira nova e vazia.

         E ele grunhia, e ele guinchava, e ele gritava e atirava bosta em todos que se aproximavam das barras da jaula, mas tudo era feito sem nunca, jamais se desfazer de seu querido catarro.
com caminho ou sem caminho

         Há tanto perdi o caminho. Por mais que tente, não me lembro de onde o deixei. Fui negligente, não tomei as precauções devidas. Um dia, quando olhei pro lado, sumira. Até que não era um caminho mau. Quando nada, era um caminho.
         Ora, não sei por que minto. Ou sei. Força do hábito. Mentir é algo de muita relevância para mim, herança, algo praticado com afinco há gerações por meus familiares, paternos e maternos.
         Grávida de mim, barriga bem proeminente, minha mãe, se indagada, dizia sofrer de verminose em estágio avançado, a ponto de verter bichas pelas ventas. Vergonha da prenhez? Pode ser, não seria novidade. Antigamente, qualquer condição um pouco diversa da mais comum era vista com desdém. Exibir uma gravidez em público tinha seu tanto de embaraçoso, pois a maioria das pessoas na rua não estava grávida. Tempo já houve até em que se escondia a embuchada dos olhos do povo.
         Entretanto, embora eu já esteja numa idade mais para velha que para nova, convém ressaltar que também não sou tão velho assim. Ao que sei, o tempo de se ocultar gravidez foi bem anterior ao da minha concepção. E, afinal, pensemos um pouco, o que seria mais vergonhoso, em qualquer tempo, para uma mulher casada: uma gravidez, ou uma colônia de lombrigas? Não fica muita margem para dúvida, decerto.
         Pode-se ver daí que, para mim, a mentira faz parte do patrimônio genético. Se minto de graça, quanto mais para dar sumiço a verdades incômodas.
         Eis o caso da afirmativa com que abri este texto. Perder o caminho não é nada de que alguém possa se orgulhar, forte indicativo de negligência, prolífica fonte de frustração. Mas muito pior que perder o caminho é ser por ele, caminho, rejeitado.
         Foi o que me aconteceu. Lá um dia, totalmente de surpresa, fui pego pelos fundilhos e arremessado longe. Estatelei-me, mas não fiquei a perguntar por quê, já estava habituado a ser tratado feito lixo (mamãe, mamãe, mamãe...).
         Sabendo ou não sabendo, o fato é que a iniciativa não foi minha. No que dependesse de mim, lá eu teria permanecido. Ainda que melhores houvesse, eu já me habituara àquele, o que já é metade do caminho para a aceitação. A outra metade é não ter alternativa. E já estava pacificado, aceito em mim, o caminho era aquele, ótimo, vamos em frente, ou fiquemos parados, ou retrocedamos, mas tudo ali, naquele mesmo lugar. Jamais me ocorreu que o próprio caminho também tivesse seus juízos e, pior ainda, suas iniciativas.
         Porra, foi tão de surpresa que, na verdade, nem sei como aconteceu. Não sei se foi um pontapé, um tranco, uma chulapada, só sei que foi.
         Tentei voltar, mas ele não deixou. Fugiu de mim, atacou-me, escondeu-se, inventou desculpas. Apenas uma vez consegui surpreendê-lo, apareci do nada, peguei-o distraído, pulei em cima e num único pinote fui mandado pra fora novamente.
         Caí, machuquei-me. Reagi como um fresco, chorei, escrevi umas merdas de poemas, fiquei com medo de tudo. No fim, entretanto, aceitei a infelicidade como minha condição natural e o desencontro como meu grande meio de relacionamento com o mundo.

         E creio que continuei a viver apenas por ódio, por este ódio que sinto do caminho que me rejeitou.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

divina fuleragem
como se ser se saber se sei lá o quê
ser meio torto meio erro meio turvo
é como se deve como se é
tanta demora
tanto tão longo tão passado tão extenso tempo
sendo-se o que não se quer
conflitando com a própria imaginação
morte ao que não está morto
tortas ao que não está torto
desfaça-se o que não está feito
deus estaria praticamente defunto
não tivesse ele nunca nascido
nascido fosse não passaria de uma bosta canina na calçada
dizendo-se divina
e o mundo acreditaria
e a entupiria de grana
e se diria salvo
e continuaria o mesmo

quarta-feira, 19 de junho de 2013

tão comum

olha lá
tudo pra lá de comum
saco
até serenidade se enxerga
placidezes remansosas entre
postes pedestres ônibus motos meios-fios
atravessadas em frente a tudo
como se nada faltasse
como se só se pudesse ser assim
como se nunca se saísse por aí
poros quase a sangrar
quase tudo derramado
olhos quase nas mãos
braços desmedidamente estendidos
por algo que nem em sonho
como se satisfação houvesse

por mais que menos de um segundo

quinta-feira, 13 de junho de 2013

imbecil primeiro
queria saber no que deus pensava
quando criou o tédio
decerto em porra nenhuma
não tenho dúvida a certos respeitos
um deles se refere à imbecilidade divina
duvido que ele exista
mas não tenho dúvida alguma
de que seja um baita dum imbecil
existente ou inexistente
que tédio e depressão
só sendo imbecil mesmo para conceber
não sei o que haveria em lugar de tédio e depressão
caso não os houvesse
fosse que merda fosse
que se ficasse por aí
dando com a cabeça na parede
e gargalhando
que as frustrações perdas negações fossem fontes de inconsequências
de que esse deus parece tão pleno
e não dessas imbecilidades sérias sisudas lacrimosas
qualquer outra coisa
no mundo só
pode ser melhor

que esse vazio com fita métrica chamado tédio e depressão

sábado, 27 de abril de 2013

E como me disse aquela feminista, enquanto limpava a baba de seu último acesso de raiva:

"Ninguém mi cômi, intão eu odeio hômi!"

sexta-feira, 1 de março de 2013



O MEMENTO MORI


hein?

                 O que é memento mori? Primeiro, uma expressão latina. Significa, literalmente, lembre-se da morte. Consta que era usada em Roma como uma exortação, para evitar a cegueira causada pelo poder, havendo registros de governantes e generais que mantinham junto a si, especialmente em seus triunfos, pessoas a lhes sussurrarem nos ouvidos que eles eram velhos, que não viveriam para sempre, que eram carecas, banguelas, barrigudos, feios, bobos, burros, uns buchos com as ancas cheias de culote, papas nos olhos e o diabo, tudo para evitar que a glória os embriagasse e os levasse a se esquecer de sua finitude e da fragilidade inata a tudo que vive.

                 Veio a Idade Média e, com ela, o que talvez tenha sido o auge do catolicismo como poder político. E aquele pessoal não estava pra brincadeira não, queria impor sua fé a todo custo. Claro que o memento mori, essencialmente uma exortação à modéstia ou até à subserviência, caiu como uma luva nos planos de dominação do mundo da santa madre. O conceito não só se difundiu como também ganhou corpo, tornando-se tema de obras de arte e assim ultrapassando o período medieval para chegar a seu ápice, até onde pude verificar, sob a exacerbada dramaticidade da arte barroca.

                 E foi aquele festival de esqueletos, caveiras e ossos avulsos em quadros, esculturas e obras arquitetônicas como túmulos, mausoléus, o cacete, tendo havido inclusive templos decorados ou mesmo construídos com ossos humanos, não por acaso denominados capelas de ossos, em lugares como Itália, Portugal e República Tcheca. Caso queira saber mais a respeito dessas edificações: http://cogitz.wordpress.com/2009/09/01/ossuaries-walls-of-bones/ (texto em inglês, mas as fotos falam por si). E todo esse esbanjamento de ossos só pra lembrar o camarada de uma coisa que, por mais que façamos, é inesquecível. E ainda que pudéssemos esquecê-la, ela nunca se esquece de nós.

                 Passado o barroco, nem por isso o memento mori passou. Continuou como elemento importante da decoração mortuária e, fato mais notável, adaptou-se a novos tempos, fixando-se na raiz de uma nova ordem de ideias, por assim dizer. Teve forte influência na literatura gótica, com a qual se inaugurou a história de terror e em cuja esteira surgiu também o gênero policial, com a pioneira criação, pelo gótico tardio Edgar Allan Poe, de Os Assassinatos da Rua Morgue.

mutatis mutandis

                 Mais interessante ainda, nesse processo evolutivo, foi a mudança operada na finalidade do memento mori. Ele foi gradualmente se despindo de seu caráter de advertência, de seu conteúdo moral, para se converter, cada vez mais, numa espécie de fetiche inspirador de atitudes, de modos de ser e de pensar, haja vista, em última análise, góticos e emos do presente.

                Durante suas sucessivas transformações sociais, o memento mori viveu uma fase muito curiosa, que eu considero, junto com a das mencionadas capelas de ossos, sua expressão mais sombria: o memento mori fotográfico vitoriano.

momentos kodak

A crescente popularização da fotografia, a partir da segunda metade do século XIX, aos poucos foi tornando acessível algo antes exclusivo daqueles poucos abonados com caixa suficiente para bancar um pintor de razoável talento: o retrato.

Ocorre, entretanto, que, naquela época, ao que parece, o povo gostava de morrer muito mais que hoje em dia. De toda forma, fosse por que fosse, morria-se bem mais cedo. As taxas de mortalidade infantil, então, eram pra Herodes nenhum botar defeito.

E era aí que surgia um problema grave e, por conta do que se explicou no parágrafo anterior, não muito raro. Ora, o que fazer quando o camarada resolvia esticar as canelas antes da chegada do lambe-lambe? Bastava fingir que o defunto estava vivo. Simples, não?

E assim, o memento mori, que desde o nascedouro trazia uma vocação manifesta para a estranheza, assumiu uma das funções mais esquisitas de sua história, deixando de ser, a rigor, uma lembrança da morte para se converter, mais propriamente, numa lembrança dos mortos.

E tome foto de defunto. Num lugar e época dos mais bizarros, a Inglaterra vitoriana (confira: http://listverse.com/2009/08/29/top-10-creepy-aspects-of-victorian-life/), o que haveria de tão macabro em guardar imagens de cadáveres?

Drácula Jr.?
Nesta altura, porém, cumpre traçar uma distinção. Podem-se identificar, conforme o que chamaremos aqui de intenção do retrato, dois tipos básicos de memento mori : o que simplesmente mostrava o morto como tal, ainda hoje praticado em meios mais tradicionalistas, como certas áreas rurais do Brasil; e o que era feito a fim de dar ao finado uma aparência de vivo. Do primeiro tipo, coloquei aqui, como exemplo, as fotos do Draculinha e do Raio de Sol (continue lendo que você entenderá). Do segundo, temos a tia Ermelinda e o Abre o Olho Moleque.

Abre o olho, moleque!

              A meu ver, era no segundo tipo que morava o perigo. Não que eu considere sadio guardar fotos de recordação de um cadáver, seja como for, mas também de modo algum estou aqui para ser a palmatória do mundo. Afinal, quem não tem suas esquisitices? E ainda mais, quem não tem seus esqueletos no armário? Acredito que qualquer um, a começar por mim, se submetido a um pente fino de sanidade mental, acabará seus dias vestindo uma camisa de força num quartinho acolchoado.

Enfim, tirante o sabor da pilhéria, não estou aqui para condenar o jeito como as pessoas querem manter suas recordações. Posso até julgá-las, é inevitável, mas não pretendo, absolutamente, condenar ninguém ao cadafalso por ser diferente de mim. Caso contrário, eu mesmo já deveria estar, há muito, comendo grama pela raiz no revertere ad locum tuum, além de, quem sabe, ter minha formosa figura ilustrando algum memento mori.

Muito bem, feitas as ressalvas, passemos à esculhambação.

A tia Ermelinda é a do meio. As outras duas estavam
vivas no instante do clique, suponho.
Cá entre nós, será que já não bastaria tirar a foto do cadáver no leito ou no caixão, mãozinhas postas, olhos fechados, etc.? Gostaria de saber quem foi o primeiro luminar que veio com a resplandecente ideia de mandar o morto se fingir de vivo. Merecia um prêmio. Pintar olhos abertos e bochechinhas coradas? Me recuso a acreditar que não houve ninguém capaz de chegar no cidadão e comentar: “Seguinte, leva a mal não, mas tô achando que esse troço vai ficar meio mórbido, na boa, de um baita mau gosto”.

PQP, mórbido é apelido! A gente olha pro trem e fica sem saber se ri ou se chora. Patético? Cômico? Maluco? Acho que tudo isso e mais algumas outras coisinhas.

E se ainda acrescentarmos ao caldo as tais das (in)felizes coincidências? Dá uma olhada na foto aí embaixo. Percebeu o que há de errado nela? Pois é, o sujeito me vai fazer propaganda de um estúdio chamado Raio de Sol (Sunbeam) na foto de um cadaverzinho? É soda.

Estúdio Raio de Sol? Será que não
dava pra ser um pouco mais
irônico?
Se o paciente leitor desejar ver as fotos aqui exibidas e ainda várias outras: http://cogitz.wordpress.com/2009/08/28/memento-mori-victorian-death-photos/.

pensando bem...

                Comecei a escrever este texto convencido de que o memento mori fotográfico era uso morto e enterrado. Todavia, agora me dou conta de que tudo na vida é uma questão de ponto de vista. Como quem diz um lugar-comum diz dois, aqui vai outro: se você quer conhecer uma pessoa, dê-lhe poder.

O fato de uma frase ser lugar-comum não significa que ela não seja verdadeira. Realmente, é no poder que as pessoas se mostram. E, do que pude observar até hoje, quanto mais alto se vai, menos íntegro se chega.


Não quero com isso dizer que o poder corrompe. Ou quero? O que acabo de notar é que, a continuar do jeito que vai, este artigo terminará com a cara de um desfile de lugares-comuns. Mas, retomando meu raciocínio, o que quero dizer não é que a pessoa, para obter poder, deva sempre praticar atos de corrupção no estrito sentido jurídico do termo.


Não, eu não considero que todo poderoso seja obrigatoriamente um vendido. O que considero sim é que, conquanto a lisura na acumulação e na disposição da riqueza seja uma componente importantíssima da integridade moral de qualquer um, os requisitos para a preservação dessa integridade não se esgotam aí.


Muitas vezes, arrisco mesmo dizer que quase sempre, o ser humano, em troca de migalhas, abre mão de princípios, crenças, amizades e assim, sem nem sujar as mãos em atos criminosos, corrompe-se em seu íntimo, trai a si próprio. E ainda há também um caso muito típico: o do sujeito que, enquanto subalterno, é um docinho de pessoa, mas, assim que elevado ao mando, revela-se o mais cruel dos tiranos.

A meu ver, gente dessa espécie também está morta, só falta o organismo parar de funcionar.

sugestão

                Por que não se resgata o memento mori para animar campanha eleitoral? Mau gosto combina com mau gosto.

Imaginem o corpo do saudoso Eneas manipulado por um ventríloquo, repetindo o famoso bordão ao lado de um candidato que se intitule herdeiro ideológico do extinto. Ou então o cadáver do bom e velho ACM sendo sacudido ao ritmo do axé sob o seguinte lema: “Estou com fulano até na morte”. Ou então: “Este candidato levanta até defunto”.

Na próxima eleição, ponha seu
memento mori pra sacudir.

No estrangeiro também se poderia lançar mão do artifício. Imaginem o corpo do Lênin, cuja manutenção, dizem, custa cem mil dólares anuais, sendo posto pra trabalhar.

As possibilidades são infinitas, basta usar a imaginação.














terça-feira, 26 de fevereiro de 2013


STIFF SURE

want women to look at me and say
gee what a handsome corpse
looks alive but in the inside pure death
the perfect one baby
rigor mortis
a sure stiff
no inner fire
but lots of who the fuck could know
the more asleep
the less I live
the more I stare
the more the same they tell me
the more life looks like nothing
don’t wanna die
don’t wanna live
I just want to remain in that same place
I’ve never been since who the fuck knows

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


PAPO C
avec M. Clochard

         Hoje vamos conversar sobre esse ente tão fabuloso e, ao mesmo tempo, tão do nosso dia a dia: o automóvel.
         Muito provável que o estimado leitor conte entre aqueles que recentemente ingressaram na massa de consumo nacional. A economia cresceu, a necessidade de mão de obra aumentou, bem como a remuneração média. Vai daí que, lá um belo dia, o distinto se viu alçado a nova e mais rendosa designação em seu emprego. Subgerente da loja de conveniência, chefe de pista no posto de gasolina, supervisor dos caixas no supermercado, qualquer que seja seu novo posto, estou certo de que, junto com ele, também veio uma nova e maior remuneração.
         E foi assim que, de um modo quase mágico, descortinou-se diante de seus olhos um novo mundo, feito de fontes de leite e mel, alamedas recamadas de pedras preciosas e céus sempre a ostentar ofuscantes arco-íris, um mundo maravilhoso, onde tudo pode ser seu, mediante financiamento.
         E então o prezado se vê numa situação inteiramente nova, ou mais que nova, inusitada. Converte-se num distribuidor de dádivas. Um novo G-Shock para sua digníssima pessoa, um Xbox pro Wanderkélson, um aparelho pros dentes da Roneywalldez, um par de Asics pro Altubancyr.
         Tudo isso, porém, é café pequeno, fichinha, mero preparativo diante do que está por vir. E que um dia vem.
         E eis que enfim chega o dia, aquele momento sem par, quando finalmente são transpostos os portais de uma revenda para de lá se sair a bordo do primeiro e tão longamente sonhado automóvel.
         Agora é hora de desocupar a garagem daquelas tralhas que pareciam ter adquirido direito vitalício de permanência no lugar: o sofá de três pés, a geladeira queimada, a caixa de brinquedos quebrados, o fogão que se esbodegou todo quando a panela de pressão explodiu. Manda tudo pra laje que agora tem carro nessa casa.
         E lá está ele. Admire-o, daqui a cinco anos será todo seu. E não terá custado nem o triplo do preço à vista. Está na hora de pregar um adesivo “Presente de Deus” no vidro traseiro e ir para a rua barbarizar.
         Entretanto, antes que o meu prezado incorpore definitivamente seu novo rodante à pletórica miríade de engenhos poluidores da atmosfera conhecida como frota urbana, convém repassar umas regrinhas básicas de bom convívio:
1-     A faixa da esquerda deve ser reservada para ultrapassagens. Não acredite em mim, acredite no código de trânsito, se o bom senso não lhe bastar. Está lá, no livrão: em pista com mais de uma faixa de tráfego num mesmo sentido, a faixa mais à esquerda deve ser reservada para ultrapassagens. Ou seja, o motorista vai para a faixa da esquerda, ultrapassa e, assim que concluída a ultrapassagem, volta a ocupar a faixa da direita. Não vá na conversa do Cremildo da van, para quem qualquer espaço em que caiba a Besta é pista, os outros que abram caminho. Também não beba nos mananciais de sabedoria de dona Cotinha, sua venerável vizinha, viúva do tenente PM aposentado, que acha que, se alguém está na velocidade máxima permitida na pista, deve sempre permanecer à esquerda. Por mais que a boa senhora diga que, agindo assim, “a gente istemos no nosso direito legítimus, meu filho”, a verdade é que a gente não istemos não. Repito, confiram a legislação de trânsito, caso não confiem em mim;
2-     O mundo para fora da janela aberta de seu carro não é uma infinita lixeira destampada. A fralda suja do Kélvyson, a latinha vazia de Schin, as embalagens de salgadinho isopor e qualquer outra matéria sem mais serventia devem ser mantidas dentro do automóvel até que se chegue a local em que haja uma lixeira de verdade para recebê-las. Carregue uma sacola ou algo similar dentro do carro para guardar seu lixo e jogá-lo fora depois, garanto que não é de mau tom;
3-     Automóvel é meio de transporte, não fonte de ruído. Deixe seu bagageiro para as bagagens, não o encha de alto-falantes para estourar os tímpanos da galera do piscinão. Meu saco agradece;
4-     Se o distinto não sabe conduzir sóbrio, o que o faz pensar que com álcool sua já escassa perícia será aprimorada?
    Por hoje é só, caríssimos. Poderíamos discorrer sobre outros tópicos que, de uma forma ou de outra, dizem respeito a sua relação com seu veículo, como o porquê de se empenhar tamanha parcela da renda familiar, presente e futura, num meio de transporte e necas de pitibiribas na melhora de sua instrução, quando nada para se tornar capaz de ler legenda de filme estrangeiro. Mas isso é assunto para outro encontro     .
Mes meilleures salutations.
_______________________________

Monsieur Clochard é consultor de comportamento para classes menos favorecidas. Nascido e criado em Paris, lá sempre viveu sob as pontes mais elegantes da Cidade Luz. Ainda jovem veio morar no Brasil, onde já ministrou cursos e palestras em inúmeras comunidades das principais capitais.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

sempre assim


só o poder justifica a maldade
basta olhar para onde há poder
permanentemente todos
a se entredevorar
ninguém adquire poder para ser bom
ninguém se dobra a poder alheio pelo prazer de obedecer
o poder advém do terror
o pirralho sádico a torturar insetos nada mais faz que
se lambuzar de poder
imagem e semelhança dum deus imagem e semelhança dum homem
cumpre que se deseje matar
cumpre odiar o que se ama
amar o que se odeia
e amar ou odiar o que nos é indiferente
de modo que todos sejamos anulados
e saibamos apenas nada
sequiosos de sempre menos
embebidos em tudo
corroídos de viver

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

misteries of the mindless


shakespeare sucks

         How would anyone enjoy a Shakespeare play? I wonder maybe it happens because the thing is so unbelievably boring, so damn dullest, then people go to see if all the alleged boredom holds up with facts.

         And they go, and they see, and all they can say after seeing the thing is that that’s all true, the last two, three, or even four hours spent by them in the theatre were, beyond any doubt, the longest, the lengthiest, the wordiest of their entire lives.

         But now what to do? Everybody is leaving the theatre with a smile in the face and a word of compliment in the lips, and not a single soul to acknowledge the simple truth, to candidly utter that all people’s smiles are because they reached the end of an ordeal alive and with no permanent harm, at least at first view.

         Let’s say the truth, Shakespeare sucks. The only way Shakespeare could be more deadening than Shakespeare was if his work came as an opera, and this, I bet, somebody already must have done, if you’re curious, because I’m not, go google and check it out. And, obviously, everybody who went to see that shakespearean opera came out the theatre pretending to be in a pure state of uttermost bliss.

         But you know, I know, even they know, all they could really feel is relief.

         Shakespeare simply sucks.