Família na sala, tevê ligada, o filho tentando se fazer invisível, inaudível, inodoro, intátil, insípido.
“Olha lá, olha lá, pai, ele tá respirando de novo! Eu não falei? Para com isso, seu merda! Quem puxa aos seus não degenera!”
“Mas será possível que você nunca vai obedecer, seu inútil! Anda, para de respirar tanto, animal de rabo!”
“É, você tá respirando muito! Bem mal ceia quem come de mão alheia!”
Silêncio. A mãe e o pai de novo se voltam para o televisor. O garoto tenta aparentar uma imobilidade perfeita.
Passam uns quinze minutos.
“Ó lá, ó lá, ó! Eu vi, eu vi! Ele mexeu o peito duas vezes em menos de dez segundos! Tá só fingindo que não tá respirando, seu filha da puta! A raposa tanto vai ao ninho que um dia deixa o focinho!”
O pai acerta uma patada na cabeça do garoto, que a custo engole o choro para não apanhar mais e pede licença para sair da sala.
“Fica sentado aí, ô poia! Não me vai sair daqui para ficar respirando pelas minhas costas.”
Intervalo comercial. O pai comenta com a mãe uma notícia sobre o mundo comunista.
“Essa imprensa é toda vendida, tendenciosa! Onde já se viu? Perseguição política na União Soviética? Isso é tudo invenção de banqueiro judeu! Só porque lá mandam viado se tratar na Sibéria? Essa cambada de capitalistas tem inveja, isso sim! Inveja dos comunistas, que descobriram a cura da sodomia!”
“A cruz nos peitos, o diabo nos feitos!”
“E as batatas? As batatas soviéticas? Cada batatão, aquela beleza! Inigualável! Não tem americano capaz de plantar uma batata daquelas! Na União Soviética, que maravilha! Todo mundo come batata lá, tá ouvindo?! Todo mundo! A melhor batata do mundo!”
“Boa fama granjeia quem não diz mal da vida alheia!”
“E aquele clima, aquele clima sempre fresco! Ouviu? Nunca acredite nas mentiras desses jornais! Sibéria, temperatura sempre fresca!”
“Cada qual com seu igual!”
“Aquele lugar é maravilhoso! O Estado! O Estado toma conta de tudo! Todo mundo come batata da boa e ninguém peida na sala sem antes pedir licença! E é cada peido, cada peido que você precisa ver! Comunista, quando peida, é pra valer! Não é essas coisinhas frouxas que não dá nem pra esquentar os fundilhos!”
Convém ressaltar que o pai nunca estivera nem a menos de cinco mil quilômetros de nenhum país comunista e que tampouco era dado a ler, pois achava a leitura uma grande perda de tempo, ainda mais quando a televisão já fornecia toda a informação necessária de forma muito mais rápida e fácil. Tudo que ele falava do comunismo vinha da boca de conhecidos seus, gente tão lida e viajada quanto ele, gente que gostava de se dizer comunista só para chamar atenção.
“A palavras loucas, orelhas moucas!”
“Aquelas batatas, aqueles peidos, aquelas maravilhas! Todo mundo na escola, comendo batata, peidando, aprendendo e sendo curado da sodomia! Aquilo sim é que é país!”
Curto silêncio.
“E agora ficam aí, esses jornais, com essas mentiras!”
O menino aproveitou que os pais se distraíam com a conversa e procurou sorver o máximo possível de ar, mas a felicidade sempre dura pouco.
“Oia, oia, oia, pai! Oia ele lá! Respirando como se fosse um paxá! Ma ocê num tem jeito mesmo não, né, ô moleque! A ocasião faz o ladrão!”
Ato contínuo, os dois partiram para cima do filho. A mãe se encarregou das bofetadas, enquanto o pai segurou a cabeça do menino e fechou-lhe a boca e o nariz. Não demorou para que ele, o menino, começasse a se debater em desespero.
“Segura as pernas deste desgramado, mulhé! Segura, senão ele vai chutar a gente! Filho da puta, nunca vai ter respeito pelos pais!”
Os movimentos do asfixiado foram se tornando cada vez mais descoordenados, convulsivos, involuntários. O menino primeiro ficou vermelho, depois, roxo e, por fim, desfaleceu, cinzento, os lábios cor de chumbo.
Os pais deixaram-no lá mesmo, no chão da sala, e voltaram a sentar-se diante da tevê.
“A dor ensina a gemer.”
“Aquela batata comunista, aquilo sim é que é batata! Lá, quando eles fazem purê, é de bacia! Aquela fartura toda de batata!”
“Amor com amor se paga!”
“E os peixes comunistas? Lá os peixes são todos ensinados, todos eles saem da água pra cagar. Precisa ver, que beleza! Nas beiras dos rios e das praias tem aquele monte de banheiros estatais, tudo pra peixada descer o barro! Que beleza! Que organização!”
“Olha lá ele agora, pai, olha! Agora fica lá, esparramado no chão, se fazendo de morto. De casa de gato não sai farto o rato.”
“Ô rapaz, trata de levantar daí antes que eu perca a paciência!”
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