QUESTÃO DE CLASSE
Um dia, a mulher
foi chegando com aquela carta de “tu nem imaginas”.
Eu tinha
quantos anos? Poucos. Comparados aos atuais, pouquíssimos.
Eu era um poço
de ignorância. E tinha consciência disso.
Abençoados os
ignorantes que se pensam profundezas de erudição. Mentes mínimas,
infinitesimais mesmo. E eles, de dentro daquele cubículo repleto de vácuo,
presumem-se senhores de todo o saber universal.
A verdadeira
felicidade reside na falta de consciência.
Sim, porque a
ignorância, quando acompanhada da consciência da vítima sobre seu estado de
inanição intelectual, converte-se numa fonte de angústia.
Bem-vindo à
minha mente.
O sujeito sem
consciência, entretanto, vive no melhor dos mundos, graças justamente à sua
falta de saber, que vai ao ponto de ele nem saber que não sabe.
Encerrado na
estreiteza de sua suposta ilustração, o camarada supõe-se o senhor do mundo e
sai por aí, qual desfilasse com um cetro na mão e uma coroa na cabeça. Ele
aprecia admirado as dimensões enciclopédicas de sua quitinete mental e diz para
si mesmo: “Caralho! Eu sou muito foda”.
Não duvido que
haja felicidades maiores, mais duradouras e, acima de tudo, mais autênticas do
que essa.
Mas, na
tranquila, o fato é que, comparado ao meio ignorante – aquele que, apesar de
sabedor da própria ignorância, não consegue, por mais que tente, se livrar
dela, – o ignorante completo é um ser com pleno potencial para a felicidade.
Moral da
história? Viva os tapados! Muito embora eu sinta uma indizível pulsão de
matá-los muito mais que lentamente.
Mas, dizia eu,
lá um dia a mulher se chegou a mim. Estava estampado naquela cara que havia
algo a ser dito, algo de capital importância.
Eu tinha – e
ainda tenho – a dolorosa consciência da profunda ignorância em que eu vivia imerso.
Provavelmente
por conta disso, entretanto, eu, das profundezas da minha própria insipiência,
não era capaz de aferir a ignorância alheia. Dessa forma, aceitava todas, ou
quase todas, as informações que me eram passadas, sem filtrá-las segundo a qualidade
da fonte.
Como seja, ante
o comportamento dela, preparei-me para receber uma revelação bombástica sobre a
gênese do cosmo.
Reconheço
agora que coloquei minha expectativa um tanto além do razoável. Também, convenhamos,
eu era inteiramente criança e minha principal fonte de conhecimento era aquela
mulher. E ela se divertia em me manobrar.
E vai daí que,
depois da previsível encenação, ela despejou a verdade: “Nós somos classe
média”.
Pensei que
seria acometido por uma crise de caganeira. Eu não sabia o que era aquilo,
classe média, só sabia que não era bom.
Eu esperava
algo do tipo: “Olha, na verdade, nós somos bilionários, descendemos de uma família
nobre. Só estamos aqui, nesta vidinha, porque aceitamos participar de um
experimento antropológico, submetendo-nos ao padrão classe média por um período
limitado. Logo tudo vai acabar e voltaremos ao nosso palácio na Côte D’Azur”.
Mas não, a
verdade verdadeira estava bem ali, nua. Algo lá, bem dentro de mim, dizia-me.
Eu era classe
média.
Senti-me
atropelado por um transatlântico.